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#diferença. Meu nome é Diva
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#diferença. Meu nome é Diva

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TOLERÂNCIA
 

Quando a gente é criança, vai conhecendo o mundo pelas beiradas. O alto é o contrário do baixo, o branco do preto, o escuro do claro, o longe do perto, o áspero do liso, o quadrado do círculo e por aí vai, numa extensa cadeia de comparações que se acentua à medida que vamos chegando à vida adulta. Crescer, então, é dividir as coisas do mundo. Nem sempre fazemos isso bem, e essas dualidades se tornam tão arraigadas a ponto de se cristalizarem como preconceitos. 


O ano que termina hoje está cheio disto: fronteiras e contrastes, oposições e extremos, abismos e confrontos. Quase tudo que se viu em 2017 teve essa feição de radicalidade, para o bem e para o mal. Da morte de Dandara ao discurso de Diva Guimarães, a professora de 77 anos que emocionou o Brasil em julho passado.
 

A paranaense neta de escravos pediu a palavra durante uma mesa na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro. Pois foi exatamente lá que dona Diva, como passou a ser chamada por quem a tietava nas ruas de pedras assentadas por negros, falou por quase 13 minutos, interrompida apenas por aplausos e choros. No Youtube, o vídeo que registra o momento tem milhares de visualizações.
 

Na dicção entrecortada mas segura, disse da violência sofrida num internato de freiras em São Paulo aonde foi levada ainda criança, da força da mãe lavadeira que a empurrou aos estudos e do seu cotidiano violento — mesmo durante a festa, por exemplo, tinha sido alvo de hostilidade racial quando uma vendedora lhe jogara na cara que um cachorro de rua que havia pouco tinha feito cocô na calçada só podia ser dela. Diva se levantou: por que meu? E cuidou em responder: pode ser de qualquer pessoa aqui.
 

Ali estava a sua potência: ela era como qualquer pessoa. Se o ano tem uma frase, é essa. Se tem um rosto, é esse. Expressivo, altivo, profundo. Uns traços de vida sulcados na face como a desenhar o mapa de um novo descobrimento do Brasil. Não o acaso de caravelas a dar com o paraíso incivilizado, mas o aprendizado constante de enxergar a diferença. Ouvi-la é como escutar uma mensagem que atravessa os séculos. Sua voz mobiliza passado, presente e futuro.
 

A professora, entretanto, rejeita a vitimização. Ela é força própria — talvez nem use a expressão por considerá-la feia, mas é um exemplo de empoderamento, esse gesto de arrebatar mediante o qual o subalterno se assenhora da sua condição de sujeito.
 

Diva esperou sete décadas para se dirigir a uma plateia de brancos refinados reunidos para celebrar a literatura num evento cujo homenageado era o mulato Lima Barreto (e dizer mulato sempre foi uma forma de branqueá-lo). 

Lima era pobre e preto. De assalto, a professora instaurou uma fissura no discurso dessa aristocracia do espírito — à mesa estavam o ator Lázaro Ramos, que foi às lágrimas desde o primeiro segundo, e a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques. Conversavam sobre negritude e livros, uma transgressão por si.
 

Mas por que Diva falou? E por que neste ano? Não são perguntas triviais. Talvez a educadora tenha falado pelas mesmas razões que levaram gays, mulheres, trans e outros grupos sociais a desmantelarem o mecanismo de silenciamento e retomarem a palavra como metáfora de vida. Dois mil e dezessete, então, foi o ano em que o poder da fala virou sinônimo de luta. 

 

Das denúncias de assédio aos protestos contra a PEC 181, falar foi ato mais forte que todo acumpliciamento. E escutar, uma necessidade coletiva.
Diva falou para não morrer. E falou também para reafirmar sua história. Ela é Diva. E era como qualquer outra pessoa ali naquela festa. Essa é a grande lição que deixa. É o fio de Ariadne que se pode alinhavar para sair do labirinto de 2018 e escapar do minotauro da intolerância.
 

dicionário
 

di·fe·ren·ça
substantivo feminino
1. Ação coletiva desenvolvida por parte de indivíduos que participam de grupos privilegiados de decisões. Envolve um índice de desenvolvimento humano sustentável

2. Ação coletiva desenvolvida por parte de indivíduos que participam de grupos privilegiados de decisões. Envolve um índice de desenvolvimento humano sustentável
 

Henrique Araújo
Editor e cronista do O POVO
henriquearaujo@opovo.com.br

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