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Transformações. Todas as vezes mãe
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Transformações. Todas as vezes mãe

Palavra por palavra, dia a dia, uma mãe se muda para o feminino onde habita o filho único. Neste relato, vive-se uma definição de amor que ultrapassa todas as outras definições
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Aos 26 anos, Mara* teve uma certeza na vida: seria mãe. Planejou a gravidez e sentia uma coragem que só as mães sentem. Não tinha dúvidas, estava preparada, assegura. E, antes de saber o sexo da criança, ela e o marido escreveram, em um papel, os nomes de menino e de menina que escolheram. No bilhete para o/a filho/a, firmaram ainda um contrato com o tempo: “Você vai ser muito bem-vindo, muito amado. A gente quer deixar esse registro pra, quando você crescer, saber o quanto já era amado desde agora”. O casal esqueceu o bilhete escondido em uma caixa de interruptor, no quarto do bebê. Lembraram-se desse amor incondicional anos e anos depois, em uma pequena reforma, quando mais precisaram lembrar.

[SAIBAMAIS]

“Foi bem de sopetão... No ano passado, ele disse que estava gostando de um colega. Eu disse: tá, ok, você tem certeza?”, Mara conta a primeira conversa com o filho sobre homossexualidade. Levi completara 11 anos, demonstrava uma personalidade amorosa, “mas bem firme, e era tímido”, guarda a mãe. Uma criança “bem comum”, que “nunca demonstrou nada de diferente”, Mara une enquanto compreende.


Uma segunda conversa, maior, veio com igual urgência – como quem nasce. “Este ano, ela veio conversar e disse: mãe, na verdade, não me sinto um menino gay; eu me sinto uma menina”, palavra por palavra, dia a dia, Mara se muda para o feminino onde habita o filho único. Aos 12 anos, Levi se descobre uma menina trans, a começar pelo novo nome que, diz, lhe cabe: Lara.


Não é uma mudança fácil, para ninguém. A mãe questionou “várias coisas”, até alcançar todo o silêncio da menina. “Perguntei: por que você acha isso? Ela falou: por que você acha que sou tão introvertida?... Isso me pegou. Eu, realmente, não fazia ideia que a Lara existia”, busca.


“Da noite para o dia”, Mara emenda, há cerca de dois meses, ela aprende sobre esta existência. Uma mãe é feita de muitas despedidas e de muitos nascimentos. “Tive todas as fases de negação, de luto. Ainda estou vivendo esse luto. Quando olho as coisas de pequena (fotografias da infância, por exemplo), digo: cadê meu bebê, cadê meu filho? Tive que ‘matar’ o Levi, pra nascer a Lara”, transforma.


No Facebook, Mara edita a vida em postagens sobre as transformações pelas quais a menina e ela passam. O furo na orelha, a sobrancelha e as unhas feitas, as roupas e o cabelo novos, a maquiagem e o biquíni. A revelação para a família, as adaptações na escola, o apoio dos amigos, o abraço dos desconhecidos. Sim, há dias muito felizes – como quando Lara ganhou o mega hair da mãe. “Ela me disse: nem se tu me desse o Play Station 4, não teria sido tão bom quanto esse cabelo!”, as duas riem.


De mãos dadas, elas atravessam os olhares e os porquês. Juntas, vivem uma definição de amor que ultrapassa todas as outras. “É um amor que você pensa: vou ter que passar por isso aqui porque é pelo meu filho. Vejo que ela está aproveitando bastante esse acolhimento que tem na família. É bonito o que ela fala o tempo todo: mãe, eu te amo! Acho que é querendo dizer: que bom que foi tranquilo, que está sendo leve, natural”, espelha a mãe.


Mara escolheu a naturalidade ao invés do espanto. Não significa que esteja, completamente, a salvo: tornar-se mãe de uma menina trans lhe traz preocupações extras. A intolerância é uma arma: 117 mortes por discriminação à orientação sexual já foram registradas, no Brasil, este ano - a estatística é do Grupo Gay da Bahia.


“Essa conversa sobre a violência, a gente teve logo. Se as pessoas vêm armadas, a gente tenta desarmar... Tu vai dizer: sou uma menina trans e não acho legal essa forma de você falar, você poderia aprender um pouco mais sobre isso. Se você não aceita, mas me respeite”, orienta a filha. “Ser mulher não é fácil e ser mulher trans é três vezes mais difícil. O mercado de trabalho também é injusto, tem as portas muito mais fechadas. Então, vai ter que estudar três vezes mais”, soma.

 

Abrigo

As preocupações lhe conduzem à aceitação. “Se lá fora não é fácil, vai ter que ser fácil em casa... O que tenho que fazer é cuidar”, abriga. Aos 38 anos, Mara é de uma geração que sabe que o mundo não é só preto e branco, rosa ou azul; que meninas não brincam apenas de bonecas e meninos não se resumem a jogadores de futebol.

 

A maternidade, para ela, não tem um manual de instruções. Diante de tudo, até do medo, havia e ainda há apenas um verbo: amar. Amar e mudar a lógica. Assim, Mara extrai sua certeza na vida: será, todas as vezes, mãe. “Estou me vendo de uma forma bem mais forte. Hoje eu me acho, plenamente, capaz de enfrentar qualquer coisa. Porque foi inesperado, não foi planejado como a primeira (gravidez). Foi um pá-pum! E disse: vamos nessa. Se é assim, me dê a mão que a gente vai juntas”.


*As identificações de mãe e filha são incompletas a pedido da família.

 

Serviço


O Centro de Referência LGBT Janaína Dutra dispõe de assistência social e jurídica, além de atendimento psicológico. Os serviços são gratuitos.

Onde: rua Rua Pedro I, 461, Centro.

Informações: 3452 2047

 

LEIA AMANHÃ

As adaptações na escola, a conquista do respeito e os caminhos da aceitação que fazem parte do processo de transição de gênero que Lara espelha. Certezas virão com o tempo e a felicidade vem em par com a descoberta de quem se é.

 

SAIBA MAIS

 

O universo transgênero era desconhecido para mãe e filha. Ao se saber uma menina trans, Lara passou a ter atendimento especializado no Centro de Referência LGBT Janaína Dutra (institucionalizado em 2012 e ligado à Secretaria Municipal da Cidadania e Direitos Humanos).


“São profissionais que vão ajudá-la a se encontrar e que vão nos ajudar também”, destaca Mara, mãe de Lara. A instituição oferece amparo social e jurídico. Lara é acompanhada por uma psicóloga. Novas fases, considera a mãe, virão. E especialistas devem orientar sobre a necessidade e o momento de mais transformações próprias à transição entre gêneros.


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