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Comportamento. A genealogia da treta na era da internet
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Comportamento. A genealogia da treta na era da internet

Como o lacre, a treta virou símbolo linguístico dos novos tempos conflagrados nos quais o outro deixa de ser alguém e passa a ser mais um rosto perdido no pântano da internet
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Shakespeare tretava. Ovídio também. Drummond nem se fala. Mário de Andrade adorava beliscar uma treta. O teatro de Nelson Rodrigues é um mergulho lambuzado nas tretas. Hilda é uma poeta das tretas. Clarice tretava uma treta de raiz e não essas Nutella.


Se o mundo, letrado ou iletrado, já tretava antes de saber o que era treta, o que tretar quer dizer hoje? Os dicionários concordam: “treta” é um vocábulo feminino que designa “ardil, estratagema, subterfúgio, invencionice”. Tretamos a fim de obter algo, mas o quê? Razão? Simpatia dos amigos? Curtidas?


Os motivos são obscuros e a ciência linguística não está nem aí para esse debate. Tampouco Mãe Jussara, cujo balcão de trabalho se volta exclusivamente a um tipo famoso de treta (a amorosa), tem se dedicado ao tema com a atenção que ele requer.


Tretamos por solidão, preguiça, tédio, indisposição? Há quem trete por compaixão ou saudade? Tretamos de férias e no trabalho, na rua e em casa, por cima e por baixo?


Num caso como no outro, tretamos certos de que fazemos o melhor. Como se fôssemos Paulo Freire entrando numa sala de quinta série de uma escola pública na zona rural com alunos repetentes. Nosso ímpeto é a catequese. Somos moucos às querelas do outro, justas ou não.


Daí não ser casual o largo uso de outro verbo, o lacrar. Somos uma nação virtual que lacra e treta. Tretar e lacrar são faces da mesma moeda. Tretar está para o conteúdo como lacrar para a performance. Normalmente são vistos juntos, mas é possível tretar sem performar e performar sem tretar.

Caso raro, mas existe.


No Yahoo! Respostas, esse oráculo moderno, tretar é quando “fulano tá armando alguma coisa” ou quando “transou com fulana”. Isso mesmo: tretar e trepar se equiparam nesse pantanoso terreno onde tateamos à procura de um fiapo de estabilidade para nossas conexões afetivas.


O sintomático é que já não façamos diferença entre uma coisa e outra. Há muito de beligerância na ginástica amorosa e de treta no afeto. E muito de performance em tudo, das tretas ao lacre.


Mas isso já é outra treta da qual espero que alguém tão desocupado quanto eu se ocupe uma hora dessas.

 

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