A democracia não precisa de tutela
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A democracia não precisa de tutela

2018-09-16 00:00:00

 

A semana que passou foi estremecida pelo rangido dos coturnos militares na cena política, pela entrevista do comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas ao Estadão e pelas declarações dos generais Antônio Mourão e Augusto Heleno, ambos da extrema-direita, dando pitacos indevidos e inconstitucionais na vida política do País, com uma ousadia só vista pelas gerações mais velhas, em tempos sinistros. Agora, deixaram claro o veto da caserna à candidatura do ex-presidente Lula, como os brasileiros já suspeitavam (daí pode-se entender o "apagão" de racionalidade jurídica que, de repente, se apoderou do sistema de Justiça).

Com uma desenvoltura ímpar o general Villas Bôas repeliu compromissos assumidos pelo Brasil com a institucionalidade civilizatória internacional, dando o dito por não-dito, no campo dos direitos humanos e arguindo uma "soberania nacional" pré-Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, como se vivêssemos ainda no tempo da velha Liga das Nações. Nenhum país civilizado - a não ser os imperialismos mais extremados - deixou de incorporar a doutrina da supranacionalidade dos direitos humanos, incorporando-a em suas legislações internas, por meio de suas Casas Legislativas. Só as ditaduras continuaram a alegar a precedência da soberania nacional sobre tratados e convenções dessa natureza.

O chefe do Exército brasileiro não fez mais do que repetir cacoetes anti-ONU de Médici e Geisel que, aliás, continuam cultuados, como sempre, pelas novas gerações de coturnos, formados na Academia das Agulhas Negras, onde a mentalidade continua a mesma da época da "Redentora". Mais apropriado seria defender a soberania nacional do saque das riquezas nacionais (pré-sal, Embraer, Base de Alcântara, Petrobrás, submarino atômico) pelos grupos econômicos estrangeiros. Não deixá-los ser entregues, inclusive, por um condottiere que faz marcha-batida eleitoral justamente para isso, em nome da caserna.

O retorno dos militares à cena brasileira, de forma inconstitucional, segundo apontam cultores do Direito, apenas acentua o retrocesso ocorrido no País, desde 2016, e que se espalha pelas mais diversas dimensões da vida nacional, como legado de mais um cambalacho das elites para revogar a autonomia da soberania popular. As eleições, segundo o desejo destas, só são aceitáveis se seus candidatos forem sufragados nas urnas. Quando isso deixa de acontecer, as ameaças - veladas ou não - tornam o ar da democracia irrespirável. Essa tem sido a história do Brasil.

Em quase 130 anos de República só tivemos quatro presidentes eleitos por sufrágio secreto que conseguiram terminar seus mandatos. Isso é um absurdo. E a cada vez sempre há algum pretexto para isso. Nem sequer inovam nas alegações. E o mais frustrante é que funcionários públicos, dotados pelos cidadãos do direito de usar armas para defender a vontade da soberania popular (sendo pagos de seu bolso para isso), tenham contribuído para "melar" o jogo democrático todas as vezes que as escolhas deste não correspondem aos interesses dos que mandam no Brasil há 500 anos.

As interferências arbitrárias, rompendo os pactos sociais arduamente construídos, estão na própria raiz do nascimento da Nação, em 1822, quando o imperador Pedro I utilizou os militares para fechar a Assembleia Nacional Constituinte que elaborava a 1ª Constituição do País, impondo outra de seu gosto. Continuou com o golpe da Maioridade, quando D.Pedro II foi entronizado à força, aos 15 anos, antes da idade legal, para assumir o poder. Retomou, com toda força, com o golpe militar de 1889, que impôs uma República sem povo e apagou uma cultura de mais de 60 anos de submissão dos militares ao poder civil.

A partir do golpe de 1889, os militares se investiram, por conta própria, do direito de dar a última palavra nos rumos políticos da Nação, quando, na realidade, são uma instituição subordinada ao poder civil, e não constituem um Poder da República. Só têm legitimidade por decorrência indireta do poder político legitimado pela soberania popular. Infelizmente, as intervenções militares, ao longo da história, sempre truncaram o desenvolvimento político e institucional do País, artificializando-o. E essa é uma das causas de nosso atraso, segundo a ciência política. E o pior é que essas intervenções são para consagrar forças rejeitadas pelas urnas. Ora, os brasileiros quererem ser protagonistas, autônomos, de suas vidas, fora do relho tradicional de uma elite mesquinha, parca de visão de futuro. A democracia não precisa de tutela militar.

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