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Retrocesso civilizatório

2017-10-01 00:00:00

A decisão tomada pela maioria (por desempate) do STF de dar nova interpretação ao dispositivo constitucional que trata do ensino religioso na escola pública, desta vez, legitimando aulas de religião específica (ainda que de forma facultativa) é um retrocesso civilizatório estrondoso, que fere de morte o Estado Laico, definido pela, agora, moribunda Constituição de 1988. O Estado Laico é uma conquista civilizatória da humanidade por se traduzir num pacto de convivência pacífica entre cidadãos de pensamentos e convicções distintas e até antagônicas, tendo como base uma ordem jurídica fundada na soberania popular, na qual há uma separação entre o domínio público (onde se exerce a concidadania e todos são iguais) e o domínio privado (onde se exercem as liberdades individuais, tais como as de pensamento, de consciência, de convicção, e onde coexistem as diferenças étnicas, sociais, culturais).

 

MALHA PROTETORA


O espaço público é de todos e nele nenhum cidadão deve ser privilegiado ou restringido por conta de suas convicções, nem impô-las a outros. Do mesmo modo, o próprio Estado laico é proibido de intervir nas formas de organização coletivas de direito privado (partidos, igrejas, associações etc.) às quais qualquer cidadão pode aderir. Com isso, a sociedade criou em torno de si uma malha protetora para protegê-la da intolerância fundamentalista, fomentadora de discriminações e perseguições em nome da “salvação” do descrente, do discordante ou do dissidente. Quando a laicidade é violada abrem-se espaço para as expressões mais obscuras (e não para as mais discernentes), no campo religioso. Basta ver o que se passa atualmente no Brasil, onde grupos fundamentalistas tomaram conta do Congresso Nacional e impregnam o espaço público de intolerância, proselitismo e, preconceito de que estão possuídos. Mesmo antes da oficialização do retrocesso civilizatório pelo STF, denúncias sobre a invasão do espaço escolar público pela intolerância, de teor fundamentalista, já davam o tom do que podemos esperar daqui para frente.

 

DIDÁTICA DEMOCRÁTICA
 

Neste País de Estado Democrático de Direito esfrangalhado, e onde a exceção espoca por todos os poros do aparato institucional, só resta agarrar-se com unhas e dentes ao que sobrou do aparato legal avariado. Isso explica o porquê do PT, PCdoB e outros partidos progressistas fazerem finca-pé para o senador tucano Aécio Neves ser, primeiro, punido pelo Senado, como determina a Constituição e, só depois, entregue à Justiça. Abrir mão disso é deixar brechas para o estado de exceção. Aécio Neves é um dos principais responsáveis pela desgraceira a que foi atirado o País. No entanto, sempre foi blindado pelo sistema e pela grande mídia (compare-se o tratamento dado a Lula, o homem que a pesquisa CNI/Ibope acaba de apontar como o melhor presidente do Brasil). Aécio merece ser cassado pelo Senado e entregue à Justiça, respeitado o devido processo legal. Caso contrário seria corrigir um mal com outro, legitimando a interferência inconstitucional de um poder (Judiciário) sobre outro (Legislativo). Seria aceitar a ditadura do Judiciário.

 

PASSIVO
 

Aliás, o Judiciário tem um grande passivo com o povo brasileiro. Sempre se omitiu frente o Estado de Exceção. Cooperou com o Estado Novo e suas aberrações, como a entrega de Olga Prestes aos nazistas; convalidou a cassação do registro do Partido Comunista em 1947, ferindo a jovem democracia, não reagiu ao golpe de estado de 1964 e sua violência, e, agora, em 2016, deu cobertura à destituição, sem crime de responsabilidade, de um governo eleito pelo povo. Não dá para ignorar que o STF tem muita responsabilidade pelo relativismo legal que abriu brechas para abusos cometidos por procuradores, policiais federais e juízes da primeira e segunda instâncias, conforme denunciam lideranças políticas e sociais e personalidades do
mundo jurídico.

 

RELATIVISMO
 

Muitos apontam como nascedouro do relativismo judicial o julgamento da AP 470 (mensalão do PT) quando o relator Joaquim Barbosa, fugindo dos procedimentos processuais consagrados pelo Direito Penal, chocou o mundo jurídico democrático, ao inverter a sistemática processual e fazer uso da polêmica Teoria do Domínio do Fato para suprir a falta de provas. O absurdo total se revelou no voto emitido contra José Dirceu pela ministra Rosa Weber: “Não tenho provas contra Dirceu, mas vou condená-lo porque a literatura assim me permite”. A partir daí, abriram-se as comportas da subjetividade que, quando consorciada com a contaminação política e a pressão das conjunturas, deram livre curso às excepcionalidades, às seletividades e arbítrios. Com isso, a sociedade brasileira foi tomada pelo ódio, intolerância e ressentimento. As vozes críticas não pediam a impunidade de ninguém, mas, punições baseadas em provas, e processos conduzidos com isenção, através de procedimentos consagrados pelo Direito. E, como não podia deixar de ser, a ausência disso atingiu em cheio a credibilidade do Judiciário, justa ou injustamente.

Valdemar Menezes

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