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Carta para quem tem medo
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Carta para quem tem medo


O recado diário dos rios, do mar, das cachoeiras, das águas livres, das chuvas, das plantas, das estações do ano, da floração, dos frutos nas árvores, das folhas no chão, da vida dos bichos, do plantio, da colheita, nada disso parece suficiente para entender que a impermanência é parte da aventura de estar vivo?

 

Os segundos correndo, virando minutos e horas, arrastando nossas vidas pelas mãos, sem trégua, os meses, os anos, o começo do ano novo, nada disso serve para provar que somos parte de ciclos, que o tempo passa rápido e as grandes chances podem nunca voltar?

 

A infinidade de idiomas, paisagens, pessoas, ideias, palavras, rostos, cores, desenhos de cidades, trajetórias, narrativas, o tamanho da Terra, a extensão em quilômetros das linhas de trem, estradas pavimentadas, trilhas de areia, os cinco continentes, nada disso pode te convencer de que é no mínimo estúpido permanecer parado?

 

As biografias dos homens e mulheres que você admira justamente porque tiveram coragem, mudaram de lugar, reajustaram o olhar, inventaram a própria vida, reinventaram a sua condição, fizeram o que parecia impossível, ouviram alguma coisa quebrar dolorosamente dentro de si antes de virar o rumo do barco, nem isso pode ser como um espelho escancarando a verdade que você precisa enxergar?

 

Os idosos infelizes, mal humorados, taciturnos, já sem lábios para sorrir, que reclamam da vida, que deixaram o que era importante se perder no caminho, que colecionam a dor do que não foi feito, não foi dito, nem amado, nem vivido, que levam no peito o cofre indestrutível dos amargos arrependimentos, que encerram a cota limitada dos dias repassando na mente as cenas do que não aconteceu, nem eles podem te convencer de que a vida termina um dia e que toda covardia será cobrada?

 

E a morte? A certeza incontornável de que um dia a vida acaba, que ninguém sabe quando, nem como, nem onde, nem o que se lembra depois, para onde se vai? Nem a experiência de já ter dito adeus e saber que o que fica são as obras, os exemplos de vida, o que as pessoas vão falar de bonito sobre nós, o que deixamos de lição? A consciência da morte não te faz pensar que é necessário ter coragem diante da vida?

 

Você não percebe que algo muito forte está pedindo a todos nós para reinventarmos a vida? Que o Espirito do Tempo clama por coragem? Você não acredita que é possível renascer várias vezes em uma mesma existência? E que se você não fizer isso que a vida pede agora, talvez não consiga ser feliz?

A hora de mudar acontece quando a vida impõe uma posição. A dor individual e coletiva, por exemplo, é quase sempre a grande chance de refazer tudo. A oportunidade do amor, por outro lado, é a escolha mais garantida. O amor é sempre trilha.

 

Uma carta feita de perguntas, é só o que posso fazer hoje por nós todos. Provocar o doloroso e urgente exercício da ecdise: abandonar a casca e sentir a dor para depois renascer mais forte. Uma carta inteira em torno de um só verbo: mudar.

 

Foto do Socorro Acioli

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