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Sempre chegamos aonde nos esperam
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Sempre chegamos aonde nos esperam

 

Aqui de Portugal observo as andorinhas. Estão por toda parte, nas paredes das lojas, nos azulejos, estações de trem, tickets de ônibus, músicas e poemas. Andorinhas simbolizam a liberdade, esperança, renovação, fertilidade e amor. São aves migratórias que sempre retornam e sabem onde exatamente onde é o ninho onde encontrarão o amor naquela primavera.

 

As mitologias universais trazem a imagem da andorinha em sentidos variados, mas sempre positivos. Transformar, transmutar, transubstanciar. São consagradas a Vênus e Isis - que virava andorinha durante a noite. É sinal de boa sorte na China. Elas levam aos céus o sangue dos sacrifícios no Mali e retornam em forma de chuva.

 

Estou em Portugal para escrever um novo romance. Vivo dias intensos, uma experiência forte que se revela tanto na pesquisa voluntária quanto nas coincidências, acasos e surpresas. Meu guia por aqui é o livro Viagem a Portugal, do Saramago, outra força quase tão onipresente quanto as andorinhas.

 

Ele é um exemplo de escritor que soube compreender exatamente o lugar desta profissão na sociedade. Alguém que enxerga o seu contexto histórico, político e que usa dos recursos da Literatura - metáfora, fabulação, vozes narrativas contundentes - para discutir o que precisa ser visto e que muitas vezes acaba sendo ignorado pela maioria nos dolorosos processos históricos.

 

Mesmo tendo a alma plena de paixão e os olhos inundados pela bela vida portuguesa, estou conectada e apreensiva com o sofrimento brasileiro. Meus amigos estão organizados em bando na luta, é bonito de se ver.

 

Se Saramago fosse vivo ele estaria falando por nós, apontando o dedo para a ameaça que paira sobre nossas cabeças. Tudo que a literatura conseguiu fazer pelas mentalidades brasileiras está em risco. A começar pelo trabalho de quem , como eu, vive das palavras e precisa que sejam livres.

 

Até aqui tenho escrito o que quero neste Jornal que tanto respeito e nos meus livros. Nunca sofri qualquer tipo de censura ou intimidação. Se posso agora dizer que estou comprometida com a luta pela manutenção da democracia no Brasil, é porque ainda há esperança de não ver a noite cair sobre nossas cabeças com o peso de um manto de ferro.

 

Se um dia eu viver em Portugal por uns tempos, como eu tanto quero e sonho, que não seja para fugir de um país em trevas. Tenho Portugal no meu sangue, sou descendente dos Pimenta da beira do Douro. Há uma ponte de amor entre os dois países. Mas no momento, a urgência é cuidar do Brasil, seguir lutando pela democracia e pela Literatura em liberdade, nosso bem maior, meu plano de voo.

 

Em todo caso, já estou voltando. Sinto saudades de muitas coisas, com o corpo inteiro. Antes de ir embora fiz mais uma tatuagem: uma frase do Saramago e uma andorinha no desenho original do Bordallo Pinheiro. Sempre chegamos aonde nos esperam, ideia original da epígrafe do livro A viagem do Elefante." Definição de destino, de fado. Há um lugar onde seremos felizes, é o que ele nos diz. Agora está gravado na minha pele. Volto para casa saudosa como uma andorinha. Levo de Portugal cinco palavras de força e um par de asas. Pés no chão: a luta me chama.

 

Foto do Socorro Acioli

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