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Movimento de recuperação poética do mundo
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Movimento de recuperação poética do mundo

 

Sou otimista até o último minuto, mas se o pior acontecer, precisaremos agir para salvar o que resta e proteger uns aos outros. Sobretudo, precisaremos estar inteiros. A vida vai seguir de forma muito mais dolorosa. Tempos difíceis exigem mais força. Continuarei no lugar que é meu, onde sempre estive e onde estarei até morrer: na Literatura. Comigo, por mim, atravessando meus sentidos e meu corpo. Resistirei falando disso. E hoje, às vésperas do risco de um caos, vou calar o clamor desesperado e falar de poesia, em voz baixa.

 

Descobri um novo poeta e isso é tão grande quanto um milagre. Os bons são raros. Aconteceu porque peguei seis horas de trem de uma cidade a outra só para almoçar com um amigo. Três horas para ir, o mesmo para voltar. É coisa de se fazer sempre, encurtar as distâncias e estar perto de quem se gosta. Esse meu amigo diz que o Paraíso são os outros. É por isso que fui passar um tempo com ele.

 

Viajei de Lisboa ao Porto, o que não é nenhum sacrifício porque o trem vai pela costa e vi lindos pedaços do mar. Nos encontramos na estação e fomos até a Livraria Lello, que eu ainda não conhecia. Melhor adiantar logo a verdade: no tempo em que estivemos juntos fomos a seis livrarias do Porto, incluindo um alfarrabista, este nome tão literário.

 

A Lello é lindíssima, mas deveria ser bem melhor nos tempos em que o meu amigo Valter era estudante e ninguém andava por lá. Agora os turistas deixam a visita um bocado atropelada, mas ainda bonita. Foi lá que pedi ao Valter a indicação de um livro arrebatador. Bastou dizer isso e ele já sabia o que indicar. Achou de pronto a poesia reunida de Daniel Faria e disse que esse, sim, era o livro que me arrebataria. Abriu e leu um poema:

"Sei bem que não mereço um dia entrar no céu/Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra".

 

Obedeci. Falava de céu e terra, essa dicotomia que tanto alenta quanto confunde. Li Daniel Faria deitada em um piso de madeira, no silêncio doloroso de um recomeço, encontrando nas palavras daquele jovem poeta português algumas respostas e tantas outras perguntas. Daniel era muito bom com os títulos: Antemanhã. Explicação das casas. Para o instrumento difícil do silêncio. Homens que são como lugares mal situados. Daniel Faria está me fazendo muito bem.

 

Meu amigo Valter Hugo Mãe está propondo um Movimento de Recuperação Poética do Mundo. Se somos irmãos de alma, é porque acreditamos nisso como centro das nossas vidas e temos como missão esse espalhar de palavras deslocadas do seu sentido usual para construir outras formas de olhar para a vida e suas pessoas. Confusas, complexas e adoráveis pessoas.

Poesia não é acessório, é necessidade. Literatura não é passatempo, é o centro. É o que o que forma e fortalece, é o que faz resistir e suportar. Vamos precisar mais ainda de Poesia se as coisas não forem bem. Mais tarde tem show do Caetano, do Moreno, do Zeca e do Tom. Por algumas horas, eles recuperarão a poesia do mundo, ainda bem. Haja o que houver, que nunca nos falte poesia e canção.

 

Foto do Socorro Acioli

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