Logo O POVO+
Deus nos livre da covardia
Foto de Socorro Acioli
clique para exibir bio do colunista

Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Deus nos livre da covardia


Ir ao Centro de Fortaleza exige o cancelamento de todas as atividades do mesmo turno. Gosto de viver o Centro com todos os sentidos, dar àquele lugar o tempo que ele merece. É o coração da Cidade, onde o sangue corre com mais força. Minha infância está ali, assim como estão os passos das pessoas amadas que me levavam pela mão e já não podem mais me fazer companhia. Um chão sagrado.

 

Eu precisava resolver um assunto de cartório e decidi comprar linhas para bordar. Seria meu prêmio de consolação depois de enfrentar senhas, filas e aquele léxico seco e sem poesia das obrigações que a vida exige de vez em quando. Calcei meus sapatos de andar com fé e fui.

 

O rapaz que nos atendeu no cartório aparentava legítima felicidade com seus carimbos e papéis, pastas de arquivo e protocolos. Olhei pra ele bem impressionada - que devolvia o olhar claramente confuso com minha cara de estupefação. É um herói, eu pensava. Precisamos de gente como ele para organizar o mundo. Tive vontade de dar os parabéns. Eu não sobreviveria por uma semana ali, em pouco tempo viraria personagem do Michel Gondry, engolida por arquivos mortos.

 

Resolvidas as burocracias, segui para comprar meu arco-íris, andando sem prestar atenção no endereço certo, querendo mesmo me perder. A vida real não tem mapa, nem guia, nem manual. É nas esquinas inesperadas que a felicidade esbarra na gente, dá um susto, desconcerta e despenteia. Piscam estrelinhas, luzes apressadas de Natal, música alta, carrinhos de pilha, tudo ao mesmo tempo.

 

No Centro de Fortaleza nada é simétrico, asséptico, organizado em caixinhas, cores brancas, linhas retas. Ao contrário. As coisas no Centro são caóticas e tudo se mistura. Sobretudo, os sons. Um dia eu quero andar ali de olhos fechados e apenas ouvir. Ninguém vai perceber ou julgar, estão todos apressados vivendo.

 

Acho graça das lojas que contratam locutores esbanjando charme e um sotaque não sei de onde para anunciar promoções na calçada. Microfone sem fio, voz empostada, piada com as moças que passam, tudo para que alguém entre, compre, garanta a comissão e a meta do dia.

 

Tudo se compra e se vende, tudo se renova. Amola-se alicate para deixar as unhas impecáveis semana a semana, enfeitadas para a lida e para os carinhos. Renovam-se os sapatos, as bolsas, as panelas de pressão. As calcinhas não tem a menor vergonha. Despudoradas, vermelhas, pretas e cor de rosa, reduzidas a fios de renda, estão ali para quem quiser ver. Ao lado, os panos de prato ajudam as donas de casa exaustas a lembrar ao menos o dia da semana. O Centro ensina.

 

A parte triste é que mais e mais pessoas moram nas calçadas, nos bancos das praças. Os desvalidos e invisíveis estão aumentando em número e dor. Por isso tudo, o Centro de Fortaleza é nosso remédio anti-covardia. O veneno da humanidade são os covardes. Um deles pode ser o novo presidente do Brasil, ai de nós. Foge do debate, massacra minorias.

 

Vou pegar meu arco-íris com as pontas dos dedos, bordar flores coloridas, encher o peito de calma e força para suportar o que tiver de vir. No Centro de Fortaleza não há lugar para os covardes. Todos estão lutando por alguma coisa, consertando, sorrindo. Contra tudo, apesar de tudo, a força pulsa nas esquinas. Deus nos livre da covardia, a madrasta má da miséria humana.

 

Foto do Socorro Acioli

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?