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Coragem!
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Coragem!


Acredito na existência dos personagens como na dos meus familiares e não acho que Dom Quixote tenha sido louco. Um corajoso, isso sim. Defenderei até a morte o seu gesto de levantar e lutar. Gostaria de ter um dia inteiro com o tal fidalgo para apertar-lhe a mão e conversar. Diria que sou como ele, sei que a distância entre o sonho e a vida é só uma ponte. Se, para o encontro comigo, ele viesse vestido na armadura enferrujada, seria uma graça a mais.

 

Só um homem ou uma mulher de coragem desbrava, enfrenta, segue adiante. É por isso que sou fascinada por ele, que dediquei tempo na aquisição de fluência em espanhol para viver cada palavra desse livro no original. Do que não sabia, perguntei à Maria Molliner, autora do melhor dicionário da língua de Cervantes. De uma pilha de livros, surge um sonho: eu me reconheço por inteiro no devaneio quixotesco.

 

Se Dom Quixote fosse a Santo Amaro da Purificação, ouviria, da matriarca da Roma negra, que ser feliz é para quem tem coragem. Se viesse a Fortaleza e conhecesse dona Maria Selva Torres Aguiar, a mulher mais sábia que meus olhos já viram, ouviria dela que ser feliz é uma decisão. Não que seja fácil, ela avisaria logo com sua voz forte e impositiva. É preciso querer, vestir a armadura da luta e andar em direção ao sonho. Só assim é possível chegar.

 

Se Dom Quixote fosse a Cordisburgo e ouvisse os Miguilins da Gruta de Maquiné ficaria sabendo o que disse Guimarães Rosa sobre viver e ser feliz: "O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e mais alegre ainda no meio da tristeza!"

 

Se ele aceitasse um passeio comigo, eu o levaria para o meu pedaço favorito de Fortaleza: o Mucuripe. Ofereceria uma água de coco - mesmo com armadura seria possível tomar no canudinho. Claro que eu ajudaria na operação, solidária com suas impossibilidades e inadequações. Enquanto o sol fosse embora, eu diria a ele que acredito na força de vida como única saída. Contaria algumas coisas que já fiz e que pareciam impossíveis, mas consegui porque a coragem mandou. Ele ficaria impressionado, tenho certeza.

 

Talvez me perguntasse de onde tirei essas ideias de ser feliz a todo custo. Eu diria que me sinto na obrigação de não aceitar a tristeza por um compromisso com a memória de meu pai, que um dia desistiu de viver. Para ele, foi impossível suportar. Não lembro o seu rosto, nem a sua voz. Não guardei nenhuma lembrança de nós dois juntos e eu tinha somente três anos quando ele decidiu partir.

 

Foi aos poucos que ele veio aparecendo em mim. Nas minhas mãos, que digitam rápido como ele digitava. Na vontade de escrever como quem respira, na alegria, na generosidade e no gosto de brincar. Se um dia lhe faltou coragem, para mim veio de sobra e assim sigo por ele, no passo de quem acorda para vencer.

 

Quase tudo que sei da vida, aprendi com a Literatura. Tudo o que sei sobre ser feliz só descobri quando tive coragem. Imaginar uma conversa com Dom Quixote no Mucuripe é uma dádiva da imaginação, essa força que nos alivia o medo do dia de amanhã. O pavor? Ele não. Ele nunca. Sejamos corajosos como o Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. Uma loucura corajosa por dia salvará nossas vidas da infelicidade.

 

Foto do Socorro Acioli

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