Logo O POVO+
O romance é uma segunda vida
Foto de Socorro Acioli
clique para exibir bio do colunista

Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

O romance é uma segunda vida


Comecei a ler um livro, o Museu da Inocência, e gostaria que ele não acabasse nunca. Há tempos isso não acontecia. Costumo escrever sobre os livros só depois do fim, após pensar um pouco e equilibrar pensamentos com sentimentos. Pela primeira vez, quero falar do que ainda não li por inteiro, do que não sei nada sobre o desfecho - uma semelhança com a vida. O que importa é que estou presa nesse livro, nas ruas de Istambul, nos olhos dos personagens, vendo o mundo por eles.

 

Quando penso nisso, lembro o conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector: Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. Encontrar uma paixão assim é um evento raro na vida. Jorge Luis Borges escreveu um conto que inventava o livro de areia: infinito, descontínuo, impermanente, em constante mutação.

 

Alguns associam à premonição da internet. Pode ser também uma metáfora do relacionamento apaixonado que leitores intensos conseguem ter com os exemplares mais amados de suas bibliotecas: falam tão dentro de nós que ganham vida própria. No enredo de Borges, o personagem abandona o livro, por puro medo. A incerteza é um monstro de mil garras.

 

Pretendo ler o Museu da Inocênciacom muita calma, apreciando o momento. Um livro que começa muito bem pode derrapar no meio do caminho e isso seria uma imensa decepção com o autor, Ohmar Pamuk. Gosto muitíssimo dele desde que li O romancista ingênuo e sentimental, seus ensaios para a Charles Eliot Norton Conferences, em Harvard. O que ele diz sobre o exercício da escrita em tão poucas páginas ilumina a vida inteira de um escritor. É ele quem afirma que o romance é uma segunda vida. Eu concordo.

 

Pelo que sei até agora, o Museu da Inocência é uma história de amor que começa em Istambul, em 1975, ano em que eu nasci. Tudo acontece entre Kemal, herdeiro de uma família rica, e sua prima distante, Füsun, de classe social mais baixa. Enquanto dura o amor, que nasce na total impossibilidade mas supera o impossível, ele coleciona objetos: um brinco perdido enquanto estavam na cama, a placa de uma loja que já não existe, uma xícara. São tantos os objetos que Kemal cria o seu Museu da Inocência.

 

O autor, Ohmar Pamuk, de fato criou o tal museu, aberto para visitação em Istambul. Lá estão expostas, por exemplo, todas as canetas que ele usou para escrever o livro, garrafas pela metade, uma caixa registradora, fotos de família, de Istambul antiga, relógios, roupas, objetos antigos que contam a história do país, da escrita, do autor, dos personagens e do amor entre eles. Um outro livro foi produzido relatando a história do museu real, com fotografias intrigantes deste projeto literário tão vivo.

 

Seguirei lendo o Museu da Inocência, torcendo fortemente pelo melhor final possível. Os finais absolutamente felizes não costumam ser convincentes. Prefiro a coleção de felicidade das coisas pequenas, especialmente quando se trata das histórias de amor.

 

Foto do Socorro Acioli

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?