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Crônica ao som de flauta
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Crônica ao som de flauta


Antes das oito horas da manhã, quando chego para dar aulas no Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará, gosto ouvir um pouco o ensaio dos estudantes de música antes de iniciar o trabalho. O dia já começa com mais beleza, essa força essencial da vida.

 

No fim da tarde da minha primeira quinta-feira no ICA, enquanto terminava a aula sobre Metodologia de Pesquisa com um grupo de trinta alunos, ouvi uma voz de mulher ensaiando uma ópera. Tão inesperado que parecia um delírio. Subi para saber de onde vinha aquela voz e encontrei uma sala de aula preenchida de som - e várias pessoas na porta, como eu, assistindo. Na segunda vez era uma voz masculina, talvez um barítono. Começou no meio da aula e eu agradeci em silêncio pois sempre achei que toda aula deveria ter um fundo musical.

 

Além do som, o ICA é cercado de palavras e cores. As paredes são brancas e livres para escrever, desenhar, expressar os sentimentos sobre a vida. Como todo espaço livre, aparece de tudo. Eu fotografo os melhores, coleciono as ideias e imagens. "Não estou sabendo existir", "Continuo dançando" e "Eu acho um absurdo" são as minhas preferidas até agora, todas anônimas, soltas nas paredes, fazendo sentindo algum (ou nenhum) enquanto andamos por aqui.

 

Nas minhas salas de aula tenho alunos dos cursos de Dança, Teatro, Cinema, Publicidade, Jornalismo, Direito, Computação, Estatística, Oceanografia, Economia e Gastronomia. Alguns do ICA, outros de fora, uma aplicação prática da interdisciplinaridade.

 

Estamos todos buscando saída para o mesmo antagonismo: a dificílima situação política, social e econômica do Brasil. Cada um procura o caminho por onde é possível seguir minimamente feliz. As dificuldades da universidade pública no Brasil são maiores do que se imagina. Ao mesmo tempo que, enquanto resiste, continua sendo espaço de formação de pensamento, reflexão, liberdade, discussão e sobretudo, espaço para pensar a arte.

 

O que mais me encanta na utopia possível do ICA é a imagem de artistas e pensadores da arte reunidos para produzir conhecimento e criar livremente, as duas vias de mãos dadas. Artistas dentro de uma universidade alcançam a condição de compreender o que estão fazendo no século em que vivem, o que aconteceu nos séculos anteriores, quem veio antes, quais movimentos artísticos e sociais nos permitiram ser quem somos e fazer o que fazemos hoje.

 

Estar na universidade pública e gratuita nos leva a pensar em muitas coisas. No que há de bom em estar aqui, na obrigação de lutar pela universidade; no papel transformador da arte; no beleza que é ouvir música nos corredores, de compreender porque o mundo precisa dos artistas como espelho do tempo.

 

Ando pelo ICA com os pés na realidade e o coração na utopia. Ela acontece na sala de aula, na trilha sonora dos corredores e a cada vez em que vejo uma aluna ou aluno falar com brilho nos olhos da sua vontade de criar algo novo. O papel do professor também é resgatar a alegria. Faço questão de sorrir quando estou no ICA. Sorrir e resistir, apesar de tudo.

 

Foto do Socorro Acioli

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