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Ary Bezerra Leite, o guardião do tempo
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Ary Bezerra Leite, o guardião do tempo


Quando eu era criança, não conseguia entender, de jeito nenhum, porque o meu padrinho passava as noites e os finais de semana cortando jornais com uma tesoura de ferro, colando em cartolinas de cores diferentes e arquivando cartões da mesma cor. Para meus olhos, era tudo um mistério meio engraçado. O que poderia existir de tão importante nesses pedaços de papel? Ainda era cedo para entender a imensidão dos gestos desse grande homem e o valor do seu incessante trabalho.

 

O nome do meu padrinho é Ary Bezerra Leite, e, aos poucos, eu descobri que sua atividade de cortar e colar tinha a ver com cinema. Ele reunia e organizava as informações sobre os filmes que estavam em cartaz e coisas do tipo, foi o que consegui compreender à época. Lembro que foi na casa dele que vi um vídeo cassete pela primeira vez, um projetor de slides e uma filmadora portátil. Eles, Ary, sua esposa Thelma e as filhas Thais e Cristina, viviam cercados de imagens por todos os lados, falavam das pessoas dos filmes como se fossem seus conhecidos, como se os atores e as atrizes estivessem ali, no convívio da família. E estavam.

 

Ary voltava de suas frequentes viagens contando, com brilho nos olhos, que conseguira um livro raro na Alemanha, uma cópia de jornal na França, um documento importante na Itália. Passava dias inteiros na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, debruçado em microfilmes. Nas viagens de férias, encontrava outros pesquisadores que estavam espalhados pelo mundo, trocavam informações, e ele recobrava o entusiasmo a cada encontro.

 

Finalmente, eu entendi seu trabalho: um guardião da memória. Ele cuidava dos detalhes históricos de coisas importantes, como os artistas ambulantes chegando à cidade, os shows de mágica, os filmes proibidos, o Cinematógrafo Art Nouveau, inaugurado em 1908 na Praça do Ferreira, os cinemas de bairros. Ary sempre foi obcecado por detalhes, pela data certa, pela grafia correta dos nomes, dos navios naufragados, dos estrangeiros que escolhiam Fortaleza como um novo chão para sua arte. Sua atenção, sobretudo, sempre foi voltada para valorizar as pessoas que construíram essa história e que foram esquecidas pelo tempo. Parte de sua pesquisa está registrada nos livros Fortaleza e a Era do Cinema: Pesquisa Histórica - Volume I: 1891-1931, A tela prateada e Memória do Cinema - Os ambulantes do Brasil, além de uma obra em fase de acabamento sobre a história da fotografia.

 

A importância do trabalho de Ary Leite está espalhada em inúmeras monografias, dissertações e teses escritas por pesquisadores. Todos que o procuram pedindo ajuda são recebidos generosamente em sua casa, com acesso ao seu acervo e à sua preciosa memória.

 

Hoje em dia, eu entendo que meu padrinho Ary assumiu a missão hercúlea de agarrar o passado com as mãos. Eu, que tenho a honra de acompanhar sua vida há mais de quarenta anos, agradeço por essa sorte. Não consigo falar dele em público, eu choro sempre. Sou testemunha de que seu trabalho é um ato de talento, inteligência, heroísmo, entrega, dedicação, investimento e sacrifícios.

 

Nós todos, que amamos a História e o Cinema em Fortaleza, devemos muito a esse homem tão genial quanto generoso, que tem a alma no passado, um coração gigante. A dedicação de Ary Bezerra Leite à memória nos salva da miséria do esquecimento.

 

Foto do Socorro Acioli

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