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O nosso bovarismo
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

O nosso bovarismo

 

A vida de Gustave Flaubert continua inspirando escritores contemporâneos. Muitos nem sabem disso, não leram nenhuma linha de Flaubert, mas se comportam como ele, bebem da mesma fonte. Sua opção de entrega à literatura e à solidão ainda é o ideal de inúmeros jovens e adultos que sentem o chamado da escrita quase como sinônimo de uma vocação ao sacerdócio.

Ser escritor está na moda. A School of Life, de Londres, publicou um vídeo no Youtube tentando responder a uma pergunta: por que tantas pessoas querem escrever nos dias de hoje? A resposta do vídeo pode ser resumida na ideia de que não escutamos mais uns aos outros. A solidão leva à vontade de escrever, de registrar o que precisa ser dito para que, talvez lendo, alguém preste atenção em nós. Pode ser uma possibilidade, mas há muita coisa em jogo.

O que parece não ter ficado muito claro ainda é que o verbo escrever pode ter como complemento uma gama extensa de possibilidades. Escrever relatos, memórias, relatórios, descrições, desabafos, vinganças, homenagens, versos, revoltas, coisas de fazer rir e chorar. Tudo é absolutamente legítimo, mas não necessariamente literário.

No caso de Flaubert, jovem, doente, recolhido a uma casa à beira do Sena, o resultado da sua escrita é de um refinamento narrativo sublime, que fez dele um clássico insuperável, um dos inventores do romance moderno. Flaubert morreu em 1880, e cá estamos nós falando dele, lendo seus livros, reaprendendo a narrar, descrever, observar como uma mosca na parede - que ao mesmo tempo consegue ler e ver os pensamentos dos personagens.

Das muitas lições deixadas por Flaubert, na vida e nos textos, a principal é o trabalho incessante para o aperfeiçoamento de um projeto literário. Ele ia ao extremo, escrevia inúmeras versões para cada texto, trocava cartas com seus pares e deixou uma extensa correspondência onde é possível conhecer o programa do curso de escrita literária que ele frequentou: a própria vida.

O que faz de Flaubert um Flaubert não é só o recolhimento, a personalidade confusa, o ato heroico de morrer na miséria e praticamente sem reconhecimento à sua época. É o uso das palavras, o modo de narrar, a forma de observar uma cena e compreender as forças que se enfrentam ali, as questões do desejo, da incompletude do ser humano, da constante necessidade de alguma coisa de que parece depender a felicidade.

Para quem deseja escrever literatura, é indispensável ler Gustave Flaubert compreendendo o seu lugar exato na história do romance moderno e todo o panorama que ele descortinou para o escritor dos dias de hoje. Somos seus herdeiros, afinal. Flaubert levava a literatura muito a sério. Foi a leitura que conduziu Emma Bovary a desejar uma outra vida a ponto de buscá-la na morte. Segundo o psiquiatra francês Jules de Gualtier, bovarismo é a tentativa de conceber-se diferente do que é, uma ilusão do eu. Escrever, cada vez mais, é uma maneira de ser profundamente bovarista. A insatisfação e a inquietude de Madame Bovary ainda é um assombro.

 

Foto do Socorro Acioli

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