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Tudo pode ser escrito
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Tudo pode ser escrito


Velocidade é uma característica do texto que só um autor com uma voz narrativa autêntica e forte consegue manejar. A lentidão nas descrições, nas pausas e nos pensamentos dos personagens e narradores está entre os dez maiores escorregões que os iniciantes levam na ficção. O que o autor pensa que é uma observação poética do mundo corre sempre o grave risco de virar uma massa modorrenta de palavras que não constroem nada e cansam o leitor nas primeiras páginas.


Acho que é preciso dizer a verdade nessas horas: leitores são difíceis de conquistar, o livro no Brasil ainda é caro, o País está em crise. É até cruel querer deixar alguém por horas preso na sala sem cor de uma prosa escorregadia e sonolenta. Por isso é um prazer imenso ter em mãos um livro veloz, com uma narradora feminina decidida, forte, de bem com a vida que decidiu viver e com um olhar agudo que conduz o leitor para lugares onde ele nunca foi, mas adoraria conhecer.

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É exatamente o caso da Giovana Madalosso com seu primeiro romance Tudo pode ser roubado, publicado pela editora Todavia. Sendo um livro de estreia, já é de admirar a autenticidade do projeto. O texto não faz nenhuma concessão, não segue fórmula alguma, não doura pílula e avança na contramão da autoficção. A protagonista é garçonete em um restaurante de São Paulo e, nas horas vagas, seduz clientes, “tem quilômetros rodados no trajeto bar-cama” e, depois, rouba os seus pertences de valor para vender em um brechó.


É como uma segunda profissão. Uma poupança. Ela faz tudo isso muito tranquilamente, de forma limpa e organizada. As vítimas são homens e mulheres, uma coleção de pessoas impressionantes. A moça não trabalha com frieza, ela conversa, pergunta sobre a vida e divide conosco, leitores, esse espectro amplo de formas de sobreviver sobre a face da Terra. Já seria ótimo se o livro fosse um catálogo de seus casos, mas há uma trama conduzindo tudo. A garçonete é contratada para roubar a primeira edição do Guarani, de José de Alencar, da casa de um professor universitário idealista. Vai ganhar uma boa grana se conseguir, graças ao fetiche de um colecionador milionário.


Giovana Madalosso já chegou ao clube dos romancistas brasileiros entendendo muita coisa que tanta gente experiente está levando anos pra compreender. A narradora rouba a atenção com classe, mantém a promessa de nos conduzir, faz uma prosa brasileira, trata de questões nossas, mostra a nossa maior e tão problemática capital por dentro das suas veias. Todas essas pessoas, tão frágeis, loucas, multifacetadas e tão humanas, demoram a sair da lembrança.


É preciso notar que, mesmo sendo um texto que corre rápido, ele também se constrói nos detalhes. O primeiro capítulo, por exemplo, é uma aula sobre como um protagonista narrador pode apresentar a si próprio sem cair no óbvio, deixando entrever nas repetições, no vocabulário e no discurso indireto livre bem feito com quem o leitor está lidando e o que esperar do que vem depois.


Tudo pode ser escrito. Depende de como e de quem escreve. O livro de uma garçonete ladra não seria um tema que chamaria a minha atenção, até agora. Depois do Tudo pode ser roubado, vou ler qualquer coisa que a Giovana Madalosso escrever.

Foto do Socorro Acioli

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