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Os véus do mundo
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Os véus do mundo


Chove na primeira página do romance Dora sem véu, o novo livro do escritor cearense Ronaldo Correia de Brito. A água tem muito a dizer nessa obra. Ao receber o leitor, a chuva anuncia que não entraremos em um sertão de solo rachado, que não cabe aqui o engano de reduzir a imagem do Nordeste à pobreza e seca, como se fossem as únicas narrativas possíveis desse lugar. Para um autor experiente como Ronaldo, há muitas maneiras de falar da condição humana, quando se arma um romance nesse pedaço de Brasil. A geografia do Nordeste isola, ao mesmo tempo em que confere à alma de sua gente uma relação com a terra e com a “ordem sobrenatural que sustenta o mundo” que poucos compreendem. Ronaldo enxerga isso muito bem.


A premissa não é inédita. Existem muitos livros sobre personagens que voltam à pequena cidade de suas raízes por um motivo familiar. Que estão perdidos e precisam de respostas, ou que vão a contragosto, cumprindo uma obrigação, atendendo ao pedido de alguém. Pedro Páramo, de Juan Rulfo, é um exemplo emblemático. Muitos outros autores utilizaram esse recurso de media in res que, aos poucos, escava camadas e camadas de passado com as mãos sangrando e fecha um arco das narrativas pessoais.

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Chove nas primeiras páginas. Entramos aos solavancos, sem entender quase nada. Debaixo de chuva que o leitor é jogado imediatamente e sem piedade em um pau de arara lotado, onde falta quase tudo e onde estão os personagens que nortearão boa parte desse enredo. Pagadores de promessa, uma jovem vestida de noiva, ex-votos pendurados e um ex-vaqueiro desempregado, que costura lingeries femininas e desenha vestidos. O começo do livro é feito de sacolejos, frases curtas e secas ditas por Francisca, a principal narradora da história. Ela precisa buscar Dora, sua avó, uma personagem ausente e gigantesca.


Os problemas da condição feminina atravessam esse livro, tanto na diegese quanto no discurso dos personagens. É a primeira experiência de Ronaldo Correia de Brito com um livro oitenta por cento contado por uma mulher. Um presente para professores de Literatura, que podem usar Dora sem véu para explicar uma lição básica da Teoria Literária: Ronaldo assina o livro, mas quem conta a história é Francisca, a narradora que ele construiu.


Mesmo com uma profusão de personagens masculinos, são as mulheres que guiam o romance. Francisca é a condutora, só vamos porque ela decidiu ir. Dora é uma sombra com a mão no ombro de Francisca o texto inteiro, um corpo que se constrói de lembranças. Uma mulher brasileira.


Dora seu véu é um livro banhado por rios. O Capibaribe, o Granjeiro, o Salgado e seu afluente, o Salgadinho. O rio Amazonas domina boa parte do texto, e a cena mais bonita acontece dentro do Uaicurapá, em Parintins, em uma lancha com o motor desligado, parada, onde só se escutam o som dos pássaros, o murmurar da água e a língua das folhagens.


Por fim, Dora sem véu é um livro tanto universal quanto brasileiro, que trata das questões contemporâneas do nosso país. Se traduzido para outros idiomas, terá muito a dizer para o mundo sobre quem somos. Não fazemos ideia de como vamos sair do ponto onde estamos, acordados no nosso próprio pesadelo. Há um momento do livro em que Francisca diz que seu pai deu os primeiros sinais de morte quando percebeu ter esquecido o verso de um poema que levou na memória a vida toda.


- Esqueci os versos, estou acabado.


O poema era sobre uma casa em ruínas. Estamos dentro dela. O Brasil sob um véu que Ronaldo descortina, os erros cometidos diariamente, esse desassossego doente, a falta de paz. Vivemos em uma casa em ruínas. Precisamos relembrar os versos da sobrevivência. Mais que nunca, precisamos de Literatura para ter equilíbrio sob a chuva.


 

Foto do Socorro Acioli

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