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Os que mudam de lugar
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Os que mudam de lugar


A literatura dos migrantes nos ensina que toda alma tem seu canto de felicidade na face da Terra. Ou mais de um. Se o lugar de paz é no chão onde pousou seu berço, a vida flui ao redor dali. Mas às vezes é longe. Tem gente que nasce com espírito de cigano, com uma vontade inquietante de encontrar o seu lugar, palmilhar chão a chão até chegar onde sempre deveria ter estado. Não sei o que explica isso. Hereditariedade, coisas da ciência, do espírito, da poesia, do DNA misturado que corre no sangue de todos nós.


Os fluxos migratórios movem o mundo desde sempre, sustentam os processos econômicos, ampliam a consciência do que é ser humano, habitar o planeta, conviver, enfrentar, misturar. Nem todo imigrante muda porque quer. Muitas vezes vão por necessidade, para sobreviver onde há alguma promessa. Maria Bethânia, na sua estreia nos palcos cantando o Carcará, apresentou uma chocante estatística de migrações dentro do Brasil, do Nordeste para o Sudeste. Quase todo nordestino tem parentes no Rio ou em São Paulo. Imaginemos esses números nos dias de hoje, no Brasil, no mundo.

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Por desejo ou por necessidade, mudar de lugar é uma transformação da alma, amplia a capacidade de ver e entender. O mundo é grande demais para sustentar e só andando por ele é possível perceber mais. Gilberto Gil explicou: meu caminho pelo mundo eu mesmo traço/a Bahia já me deu régua
e compasso.


Ao longo da semana o mundo parou para olhar os imigrantes americanos. Ver. Enxergar. O atual presidente não só separou crianças dos seus pais como os prendeu em jaulas, coisa que nenhum ser vivo merece. Esse tema é do campo da Geopolítica, das Relações Internacionais, acordos diplomáticos, polícia de fronteira, mas eu só penso mesmo nas crianças, nas famílias, nas mães.


A capa da revista Time dessa semana tem o fundo totalmente vermelho e ao centro, frente a frente, um presidente frio diante de uma criança chorando. Sofrendo. Ele não quer essas pessoas no seu território. Não quer homens e mulheres que não são da sua raça. Se há crianças, não o interessa. Nem ao presidente, tampouco à primeira dama. O objetivo é a limpeza étnica. Esse discurso não é familiar?


Uma gaiola não é muito diferente de um campo de concentração. O que lemos sobre o Nazismo, em um passado que parecia nunca voltar, é refeito em uma narrativa atualizada e cheia de pavor. Como é possível que tenhamos retrocedido tanto como humanos? A onda de desumanização avança e nós, brasileiros, não podemos permitir que chegue até aqui. Já temos as nossas dores, as feridas abertas dos escravizados, do racismo, da desigualdade. Que os escritores que falam de migração continuem narrando, denunciando, descortinando as verdades. Que não se perca em nós a capacidade de chorar por uma criança que nunca vimos, mas cuja dor também é nossa.

Foto do Socorro Acioli

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