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A respiração das coisas
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A respiração das coisas


Há muito o que pensar sobre a prática, o vício, a mania e a felicidade de ler poemas. Quando são bons, é claro. A carga de estupefação e beleza só existe nos textos que alcançam o status de arte. O fazer poético engana, parece fácil, um jorro natural. Não é. O bom poeta é o que trata as palavras como um ourives cuida das pedras preciosas. Sem pressa alguma, com a paciência e o talento de quem monta, pouco a pouco, uma obra que transcende a materialidade.


Um dos problemas que afasta os leitores da poesia é a ideia errada de que poemas só servem para falar de amor, os que deram certo e os fracassados. A linguagem poética não é fim, é instrumento. Cabe tudo em um poema. Observações sobre a infância, crítica social, morte, revolta, História. E sim, os versos são também um lugar confortável para falar de amor, força motriz da vida.


Outro problema da poesia é que pouca gente entende, de fato, o que ela é. Marina Colasanti disse algo sobre isso que esclarece muito: “a gente escreve versos. Quem tem que dizer se é poesia é o nosso leitor”. Elencar palavras e rimas em um papel podem não significar poesia alguma. Alcançar o estado poético não é algo que se faz assim tão fácil e só o tempo de vida do texto responde se aconteceu.

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João Cabral de Mello Neto defendia um fazer poético nascido de um senso de responsabilidade com as palavras. E assim fez o que fez, uma obra monumental.


Seco e sem piedades, mas que emociona e comove com a força que poucos conseguiram.


Mês passado eu decidi ler apenas poesia. Reencontrei a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, nos livros Navegações, Dia do Mar e Ilhas. Muitos brasileiros conheceram Sophia pela voz de Maria Bethania, dizendo os versos “Quando morrer voltarei para buscar/os instantes que não vivi junto do mar”, antes de começar o Canto de Oxum.


A obra de Sophia é ampla, ela escrevia sem parar, desde criança. Publicou também literatura infanto-juvenil, prosa para adultos, teatro, ensaios e fez traduções. Seu nome é aclamado em Portugal, um país que de fato ama e valoriza os seus escritores. O que faz o trabalho de Sophia de Mello Breyner Andresen tão especial é que sua alma desliza nos significados que seu texto constrói. E isto está com ela, desde sempre.


No final do livro Ilhas, há um texto de 1988 que Sophia leu por ocasião de um evento na Sorbonne, em Paris. É uma aula grandiosa sobre o fazer poético e sobre os motivos dela mesma ter alcançado um lugar no panteão dos grandes escritores na língua portuguesa:


“Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.


Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si. No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização”.


Cada dia mais precisamos de poesia e silêncio. É quase parte de uma receita para não enlouquecer em tempos tão confusos. Silêncio, Sophia e mar.

Foto do Socorro Acioli

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