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Fortaleza entre-lugar
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Fortaleza entre-lugar


Fortitudine. Fortaleza exige muito da gente. Estamos sempre no quase. Essa cidade é, como diz Silviano Santiago para tantas outras coisas, um entre-lugar.


Fortaleza não sabe mais quem é, está perdendo a memória, não lembra quem foi um dia, nem como chegou até aqui. Uma borracha gigante apaga nosso em rasgos brutais. Lá se vai o edifício Califórnia, a casa azul da Tenente Benévolo, os vários casarões da Santos Dumont, a Jacarecanga toda desfigurada, o San Pedro quase de partida, o Náutico agonizando no meio de uma disputa inglória. Quem defende as derrubadas das construções antigas fala em nome do progresso. Ele chegou em algum lugar? Não vi.


Temos os problemas de uma cidade grande sem as vantagens culturais de uma cidade grande. Temos muito mais salões de beleza que cabelos. E muito menos livrarias e bibliotecas que cabeças. Um dia me disseram que o Ceará é a cabeça do Brasil, basta ver o desenho no mapa. Agora somos hub. Somos líderes em aprovação nos vestibulares mais difíceis do País. Mas ao mesmo tempo, a população de rua está aumentando e as pessoas continuam morrendo diariamente, assassinadas. Não está tudo bem.

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Fortaleza, um entre-lugar. Porto de passagem. Dizem que em todo lugar do mundo tem um cearense fazendo algo brilhante. Fortaleza tem a mania feia de expulsar talentos, principalmente os que começam algo de bom que não foi feito ainda. Não há lugar e eles vão embora.


O melhor de Fortaleza são as pessoas. Fortitudine é resistência. Gente que aguenta o sol na moleira e divide, abre portas, doa, amplia.


É o Talles Azigon abrindo biblioteca no Curió, a Adelaide Gonçalves dividindo seu acervo de livros raros no Gabinete Plebeu, a Márcia Machado lutando pela qualidade da saúde na primeira infância, os anônimos que ajudam os animais de rua, os lutadores incansáveis dos movimentos sociais, enxergando os invisíveis.


É o Miguel Macêdo e a Ana Márcia Diógenes ensinando um jornalismo feito por pessoas e para pessoas. São esses resistentes que nos sopram alguma coragem.


Daqui da minha janela eu vejo o Mucuripe, quase vejo o lindo farol velho. Enxergo o farol novo e o novíssimo, tão carecidos de alguma beleza. É diante do Mucuripe que consigo amar Fortaleza plenamente, olhando para frente, vendo as jangadas e nossos maiores heróis voltando do mar.


Da minha janela também vejo os escombros da Via Expressa, as casas demolidas tomadas pelo lixo, vasos sanitários, restos de sofás, uma pilha triste e desesperadora de vida desfeita. Alguns moradores permanecem em suas casas solitárias no meio da demolição e suportam viver no escuro. Não há luz nos postes. Não há luz no caminho.


Na frente de uma das casas há uma árvore de flores brancas que continua lá, como se nada estivesse acontecendo. Sempre que eu lembro dela, vou checar se permanece. E lá está viva, florida. Acabei de ver de novo. Não sei que tipo de planta é essa que não para de florir. Não sei que tipo de gente nós somos, com essa força injetada nas veias para aguentar tudo que estamos vivendo: desemprego, violência, destruição. Deve ser o sol. Ou a sina que o nome da cidade confere a todos nós. Fortaleza: sigamos. Como diz meu querido Frei Betto: “deixemos o pessimismo para tempos melhores”. Por aqui é sempre tempo de luta.


 

Foto do Socorro Acioli

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