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Literatura em tempos de dor
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Literatura em tempos de dor


Muita gente diz que literatura não serve para nada. Que é só diversão, passatempo, lazer. Uma opção de distração dentre tantas outras, pra quando sobra algum tempo. Dizem que é como perfumaria, um acessório a mais na vida, coisa dispensável. Cereja do bolo, enfeite que não faz falta.


É natural pensar assim em um país onde falta o básico para a maioria. Parece lógico imaginar que, sem comida, saneamento básico, acesso à saúde, moradia e educação, ler literatura é inútil.


Quando alguém chega a falar das vantagens da leitura, aponta para as questões superficiais e imediatas. Ler melhora a concentração, aumenta o vocabulário, ajuda a ensinar conteúdos didáticos, melhora a escrita, ajuda a passar no Enem. É tudo verdade, mas vai muito além.


É difícil compreender o papel da literatura na sociedade brasileira porque não somos, ainda, um país de leitores. E porque poucos entendem o que é literatura de verdade.

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Os bons textos literários são os que olham para a vida com profundidade e honestidade. Que são escritos a partir do desejo de parar e observar algo ou alguém. Temos José de Alencar pensando a identidade brasileira, Rachel de Queiroz traçando um quadro quase sociológico de quem foram os homens e mulheres do seu tempo, suas questões e condições. Fez isso junto com expoentes da geração de 30 e 45, cada um a seu modo. Jorge Amado expõe a Bahia, onde pulsa forte nossa herança africana. Conceição Evaristo, hoje, fala do que é ser negra, ecoando a voz de Carolina Maria de Jesus e de tantas outras mulheres.


Clarice Lispector entrou nos recônditos dos sentimentos, essa força que move os minutos. Machado de Assis foi um mestre da língua e da análise afiada pelo sarcasmo. Guimarães Rosa abriu a alma do sertão. Cito apenas uma minúscula lista de autores canônicos, uma amostra da produção nacional. Vozes ecoam por todos os lados e por elas, pela literatura verdadeira, vamos entendendo todos os pontos e perspectivas das situações que precisamos enfrentar.


Quando Marcelino Freire fala o seu conto Eu não sou da paz, é possível sentir na carne a dor de uma mãe que viu um filho morrer assassinado. Um por um, a partir de cada autor e autora, um mosaico de verdades forma e fortalece um olhar justo para o mundo.


A importância da literatura desde a infância não está somente na aquisição da linguagem, do alfabeto, na decodificação. É a educação dos sentimentos e de uma forma de ver a vida apta a compreender as pessoas dentro de suas circunstâncias. A literatura é o caminho para o respeito.


Penso em tudo isso enquanto acompanho as notícias sobre o assassinato da vereadora do Psol, Marielle Franco. Mataram uma mulher que lutava por quem não tem voz, que mostrava ao mundo os erros do nosso sistema injusto, misógino e racista. É uma dor imensa, mas que nos acorda para a luta. Já estamos em uma situação grave.


Cada vez mais, a literatura é fundamental. Está no centro de tudo porque nos faz entender e sentir que a humanidade é plural, o Brasil é múltiplo e que ainda há muito a ser feito. Os homens e mulheres de pensamento estreito estão colocando em risco nossa fraca democracia. Por isso, vamos aos livros para preparar a alma. A literatura não é só necessária: ela é urgente.

Foto do Socorro Acioli

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