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Ana e Jacinto
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Ana e Jacinto

 

Em 1996 escrevi algumas poesias. Nunca publiquei, mas fizeram parte de uma exposição no Palácio Rio Branco, em Salvador, ao lado do Elevador Lacerda. Os poemas dialogavam com uma série de fotografias da capital baiana em preto e branco. Não tenho mais nenhum comigo, são palavras que moram no passado.

Eu tinha vinte e um anos. Aceitei participar da exposição com muita timidez. Enquanto os textos estavam expostos, recebi o telefonema de alguém do Palácio Rio Branco, avisando que um casal português que visitou o lugar gostaria de conversar sobre as fotografias. Insistiram em falar com os responsáveis pela exposição e tinham alguma urgência, pois estavam quase de partida. Marcaram uma reunião no dia seguinte, à noite, no lobby do hotel onde estavam hospedados.

Chamavam-se Ana e Jacinto, um casal elegante, ambos na casa dos sessenta anos, eu presumo. Lembro que fui até lá muito nervosa, mas a dona Ana, usando um impecável coque no alto da cabeça, me trouxe uma paz imensa quando chegou perto e começou a conversar.
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Não era nada sobre as fotos, ela queria os meus poemas. Gostou muito do que leu, ficou especialmente emocionada com um deles que falava do cais. Contou que costumava reunir amigos em sua casa, em Beja, para falar sobre literatura. Disse que liam em grupo uma vez por mês, em uma espécie de sarau, e quando viu os poemas imaginou que seria perfeito levar para seus amigos a escrita de uma jovem e desconhecida poeta brasileira.

O responsável pela exposição disse que ela só poderia levar os poemas se também comprasse as fotos. Ofereceu um preço alto, que o casal não aceitou. Para minha sorte, seus anos de vida conseguiram enxergar o profundo desapontamento nos meus olhos. Claro que eu não concordava em nada com aquilo. Eu queria dar todos os poemas para ela, não me importava com dinheiro.

Delicadamente mudamos de assunto e eu contei que gostava muito de Florbela Espanca. Ela pediu meu endereço e nos despedimos. Pouco tempo depois recebi uma linda edição de capa branca, com todos os sonetos da Florbela e dedicatória assinada pelos dois, Ana e Jacinto. Cobri com uma capa de plástico, como quem protege um tesouro. Esse livro anda comigo desde então. Sempre andará.

Lembrei disso tudo porque minha amiga Tâmara Bezerra está em um evento de narradores em Beja, e saber disso me provocou um sobressalto. Fiz algo que nunca tinha feito antes: pesquisei o nome do casal na internet. Jacinto Brito Lança e Ana Brito Lança. Ele era médico, faleceu em 2008. Ela aparece em uma foto na inauguração de uma biblioteca com o nome dele. Reconheci os seus olhos e só pude chorar muito ao vê-la de novo.

Não há nada a fazer além de chorar. Não posso voltar no tempo e entregar todos os meus poemas para o seu sarau. Só posso torcer para que a vida me ofereça uma segunda chance.

 

Foto do Socorro Acioli

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