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A gramática é um país
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A gramática é um país


Escrever bem é como fazer um bolo xadrez, daqueles que eu comia na infância e nem sei se ainda existem. Muitas camadas. Muitos recheios. Inúmeros processos. Escrever bem é juntar as palavras certas e esse é um dos ofícios mais difíceis do mundo.


Sem entrar no mérito da invenção e da poética, quero mesmo é falar da gramática. Sou imensamente grata aos revisores e preparadores de texto que tem trabalhado comigo ao longo da vida. Eu invento lugares, pessoas, situações, dramas, comédias e fecho a cortina. Meus revisores entram em cena para dar um banho de ouro antes do espetáculo começar.


Meu primeiro revisor é o senhor meu marido. Decorou as regras todas e já sabe até os meus erros de estimação. Caio sempre nas mesmas ciladas e jogo a culpa no meu inconsciente. São pouquíssimos errinhos, ele sempre fala. Revisor que ama de verdade ainda corrige com carinho.


Minha amiga Joice Nunes, a preparadora de textos que eu sempre recomendo em Fortaleza, também vive a postos para minhas dúvidas. Ela usa uns óculos enormes e eu fico achando que ainda preciso criar uma personagem inspirada nela, uma pessoa que mora dentro das palavras, que vive delas e por elas. É que quando vejo a Joice lembro de um dos meus livros favoritos do Monteiro Lobato, o Emília no País da Gramática.

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Logo Emília, uma boneca que acabava de aprender a falar, aproveitou demais essa experiência insólita. Fez muitas perguntas, conversou com verbos, com pronomes e deu um grande beijo nos adjetivos possessivos meu e minha, dizendo que eles eram seus amores.


Um dos melhores momentos desta viagem é a visita de Emília ao Verbo Ser. Apresentou-se no palácio em que ele vivia como repórter do GRITO DO PICAPAU AMARELO. Com essa apresentação, ela conseguiu a entrevista – que nunca foi publicada, porque a repórter levou um lápis sem ponta e não conseguiu anotar o que Vossa Serência estava dizendo.


De tudo que Emília foi aprendendo sobre a gramática, ela achou uma maneira de aplicar aos fatos de sua vida. Por exemplo, quando escutava a explicação sobre os pronomes mesoclíticos, que vem no meio do verbo, a boneca associou a uma comida que tia Nastácia prepara, os pimentões recheados: os pimentões são os verbos e a carne que recheia os pimentões são os pronomes mesoclíticos.


O ponto alto foi quando Emília recusou um beijo da anástrofe, que inverte os termos da frase, com medo de que ela invertesse os termos de sua cara, pondo a boca em cima do nariz. Ainda perguntou se a senhora Anástrofe não era irmã da Catástrofe.


Tão bom quanto a viagem da Emília é o livro Tirando de Letra, do Chico Moura e Wilma Moura, uma gramática na prática. Um ótimo guia para escritores distraídos que ainda teimam na rebeldia de escrever com o coração, escorregando aqui e ali, deixando escapar uma regra errada.


Escrever é mesmo um dos ofícios mais difíceis do mundo. É por isso que algumas pessoas nascem com o que Gabriel García Márquez chamou de bendita mania de contar. Se não fosse algo que tomasse conta da gente, que dominasse os pensamentos, as mãos, os sonhos, se escrever não fosse mesmo algo tão importante na vida de um escritor, seria muito fácil dar meia volta e fazer outra coisa. Escritores de verdade não conseguem desistir, apesar das regras gramaticais, dos demonstrativos e das colocações pronominais. Feliz do escritor distraído que tem um bom revisor por perto.

Foto do Socorro Acioli

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