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A literatura dos deslocamentos
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A literatura dos deslocamentos


O casamento arranjado pelas famílias sem possibilidade de escolha. A ponta do sári sobre a cabeça, em demonstração de respeito ao marido. A tinta vermelha na risca dos cabelos. As cores dos sáris. O hábito de comer com as mãos. Os equívocos na relação de posse entre homens e mulheres. O curry de ovos. Os pés pintados. As castas. O Dharma e o Karma. Para nós, ocidentais, a cultura indiana é um mistério quase impossível de transpor.


Estamos quase sempre operando um entendimento que nunca ultrapassa a superfície, derrapa nos clichês, enxergamos errado. Muito errado. Uma das poucas coisas que sabemos certo é que indianos deslocam-se pelo mundo inteiro, alcançam destaque na ciência, assumem postos em universidades de ponta em vários países. O que talvez seja difícil para nós é compreender tudo o que acontece nesses deslocamentos.


O livro da escritora Jhumpa Lahiri , Intérprete de Males atravessa todos esses temas. São contos que narram a vida comum de indianos — ou americanos filhos de indianos — que mudaram de casa, foram viver nos Estados Unidos. Uns por opção, outros por força das circunstâncias.


Deslocar-se é muito mais do que deixar os parentes, sentir saudades, mudar a rotina. É quase um novo parto, uma outra consciência sobre si mesmo. Os personagens de Jhumpa precisam reinventar suas vidas e alguns recusam isso. É nos detalhes da rotina, na mesa posta, nas conversas em família, que moram os momentos de tensão e impermanência de cada um.


Jhumpa é inglesa, filha de indianos. Morou bastante tempo nos Estados Unidos, trabalhou como professora de Literatura na Universidade de Princeton, mas decidiu mudar-se para Roma, onde vive até hoje. Seu livro mais recente trata dessa relação com o idioma italiano, com os estudos prévios de latim e apresenta a intimidade dessa história de amor entre uma mulher em busca de uma nova linguagem para sua literatura.

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Uma das belezas do Intérprete de Males está na precisão e na tranquilidade da narração. Cada detalhes está ali porque é necessário que esteja. E pouco a pouco a paisagem está claramente constituída para o leitor, seja a casa de uma mulher de cento e três anos, seja a preparação de um carneiro cozido.


Uma das maravilhas da literatura é provocar essa aproximação empática lado a lado com um estranhamento, uma tensão crescente na vida dessas personagens que quase passamos a querer bem.


Durante toda a leitura do livro eu lembrei da primeira indiana que vi na vida, a professora de yoga Ved Arora que mudou-se para Fortaleza com o marido Harbans Arora. Posso recordar perfeitamente do quanto olhei para cada detalhe de suas roupas, ainda criança. Dos traços incomuns para mim, os olhos, o nariz, o sorriso. Pensei muito na filha deles, a Subha Arora, testemunhas desse deslocamento de tão longe para Fortaleza. Acho que foi com essa família, que tive a sorte de conhecer muito cedo, que aprendi o fascínio pela Índia, que já visitei, mas estou longe de entender.


Tudo na obra Intérprete de Males me agradou. O tema, a forma, a elegância, as questões da autora, seu olhar para o mundo contemporâneo. O livro ganhou o Prêmio Pulitzer e é um dos preferidos do ex-presidente Obama. Teremos isso em comum. Vai ser difícil esquecer todas essas cores.

Foto do Socorro Acioli

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