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Só o amor nos permite enxergar
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Só o amor nos permite enxergar


Amar um gato é mergulhar no mistério do inexplicável enigma do amor. Acontece aos poucos, cresce com as horas, toma conta de tudo e permite que a vida se complete com a paz verdadeira que só os gatos conhecem.


Meu primeiro gato, Caramelo José, acaba de partir e me joga mais uma vez no enigma do doloroso minuto da morte. Sinto muito a falta dele, tanto que dói.


Estou como uma criança interrogando a vida. Os espíritos dos gatos podem ficar por perto? Ele ainda pode sentir o meu amor? Será que ele ainda me escuta se eu falar? Será que ele vai andar invisível pela nossa casa, deitar na cama comigo, relaxar na rede, caçar moscas, pegar sol na janela? Será que um dia eu poderei vê-lo outra vez?


Sete e vinte da manhã do domingo e ele já não poderia mais estar aqui de novo, pedindo colo, dormindo na barriga da gente, fechando os olhos de tanta felicidade ao receber um dengo. Não é só um gato, é meu grande amor felino, que me ensinou uma nova maneira de sentir as coisas. Um tipo de amor sem palavras, fortalecido no gesto, no silêncio e no sentimento.


Não é só um gato, é um amigo que me deu de presente uma grande coleção de dias felizes. Durante oito anos eu tive a sorte de ter ao meu lado o gato mais puro, carinhoso e doce que conheci. Que esfregava a cabeça nas visitas, pulava no colo de quem dava cabimento e ficava aninhado todo o tempo possível. Vou fazer uma tatuagem, vou transformá-lo em personagem nos meus livros, nos contos, nessa crônica, vou deixá-lo sempre forte, perto de mim, encarnado na pele.


Só abrimos os olhos enquanto amamos. Seja um gato, um cachorro, um homem, uma mulher, os filhos, os amigos: só o amor nos permite enxergar


Na brincadeira alentadora de imaginar, vejo Caramelo José de óculos, bem sentado, lendo esse jornal. Ele já deve saber exatamente a página onde fica a minha crônica de todas as terças e vai direto ao lugar certo. Assim ele saberia que estamos todos muito tristes, que a Florzinha mia procurando seu irmão, que o Dr. Rafael, a Luciana, o Ric, a Micheline, a Juliana e a Fernanda estão lembrando do quanto ele foi um gatinho bondoso. Ele poderia ler que a Beatriz está tentando digerir esse luto e que a Camila foi ver se ele ainda estava no armário. Não está. Eu e o Zé Marcos choramos quase o tempo todo nos lugares vazios.


Mas vamos parar de chorar. Domingo já é outro Natal, a vida vai seguir adiante e precisamos continuar andando. Vamos levar esse amor pra sempre, pela vida inteira, nas lembranças de um gatinho de olhar tão puro, o nosso monge, nosso caramelo de paz.


Acho que os gatos sabem muito mais do que nós sobre tudo. Somos ignorantes, seguimos tateando, um dia após o outro, agarrando verdades frágeis, manejando o que é possível, mas em quase completa cegueira. Só abrimos os olhos enquanto amamos. Seja um gato, um cachorro, um homem, uma mulher, os filhos, os amigos: só o amor nos permite enxergar. Como diz meu querido Marcelino Freire, a vida é uma constante teimosia. Pois teimaremos em continuar amando. Adeus, Caramelo.

Obrigada por tudo.

Foto do Socorro Acioli

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