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O anjo do lago
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

O anjo do lago


Na noite de sábado, a artista mineira Angela Lago assistiu dois vídeos do filósofo Emmanuel Levinas, falando do próprio sofrimento ao ser preso durante a Segunda Guerra Mundial. Todo o seu trabalho foi construído a partir da memória dos seis milhões de judeus assassinados na Shoah e da lembrança de ver o ódio na face do outro.


Levinas é filho de um século que, segundo suas próprias palavras, “em trinta anos, conheceu duas guerras mundiais, os totalitarismos de direita e de esquerda, hitlerismo e stalinismo, Hiroshima, o goulag, os genocídios de Auschwitz e do Cambodja. Século que finda na obsessão do retorno de tudo o que estes nomes bárbaros significam. Sofrimento e mal impostos de maneira deliberada, mas que nenhuma razão limitava na exasperação da razão tornada política e desligada de toda a ética”.


Angela postou o link do vídeo na sua página pessoal do Facebook e comentou que estava ouvindo Levinas para compreender melhor o conceito de alteridade e aproximar-se do “pensamento de quem sobreviveu ao horror e nos fala da responsabilidade, de ver o outro”.


Ela assistia a esses vídeos enquanto se recuperava de uma cirurgia no fêmur, depois de uma queda na chácara onde vivia sozinha, em plena paz. Poucas horas depois, na madrugada ela sofreu uma embolia pulmonar e faleceu, muito de repente, deixando uma imensa tristeza no coração de seus amigos e admiradores.


Conheci Angela pessoalmente dentro de um carro, no percurso entre Fortaleza e Aracati. Passamos um final de semana juntas, por ocasião da saudosa Festa do Livro e da Leitura, em Outubro de 2005. Conversamos o pouco que foi possível, mas o efeito desse encontro foi impactante.


Por causa dela, em homenagem a ela, escrevi o livro O anjo do lago, finalista do Prêmio João de Barro de Literatura, uma história para crianças que fala da arte como missão. Angela tomou decisões muito corajosas em sua vida. Escolheu ser quem gostaria e viver da forma que fazia bem ao seu espírito. Na sua descrição, em uma de suas redes sociais antigas, perguntavam sua atividade preferida. Ela respondeu: tomar banho de cachoeira. Andar devagar, sem pressa.


Nessa toada mineira, ela construiu uma obra sólida, premiada, emocionante, deixou um legado exemplar para toda uma geração de ilustradores e escritores. Seu “João Felizardo, o rei dos negócios” é uma aula sobre o que pode e deve ser a literatura para crianças. Usou diversas técnicas no trabalho com imagens e palavras. Alargou nosso horizonte.


Sua última mensagem para o mundo foi o pedido para assistir Levinas, que nos convida a viver a alteridade, cada vez mais necessária nessa etapa sombria da nossa jornada coletiva. Sempre que alguém morre minha vida para um pouco para pensar, mais uma vez, nesse mistério intransponível que vivemos todos nós.


Em sua homenagem, vou ler o O anjo do lago em voz alta hoje, pausadamente. Felizmente ela pode saber o quanto eu a admirava, a ponto de virar personagem de um livro que marca uma mudança determinante no meu trabalho. De Angela, fico com essas duas imagens: andar sem pressa e olhar o outro. Não é fácil, a rotina pede outra coisa, clama pela pressa e o atropelo. É tudo uma questão de decisão. Ela decidiu por uma vida em estado de arte. É assim que permanecerá entre nós.


Foto do Socorro Acioli

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