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A mulher da cola
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A mulher da cola


O Ceará é terra fértil para escritores. A realidade é mais absurda que qualquer invenção, e eu vivo colecionando temas maravilhosos – e secretos. Já sabendo do meu ofício de colecionadora de fatos insólitos, os amigos me avisam quando sabem de uma novidade. Esses dias, recebi muitas mensagens para me apresentar à Mulher da Cola e estou tomada de curiosidade.


Segundo os relatos e os vídeos das câmeras de segurança, a Mulher da Cola age na madrugada. Anda arrastando uma mala, um carrinho com uma bolsa, algo assim. Caminha tranquilamente, para diante da loja, abaixa e cola os cadeados grandes das portas de alumínio nas lojas do centro de Fortaleza. E vai embora, calma e serena, como se nada tivesse acontecido.


Já tivemos um bode que bebia com as pessoas, levava a suspeita de ser a reencarnação de um homem traído, terminou a vida empalhado em um museu e teve o rabo roubado. Nosso imaginário também conviveu com a fantasmagórica Hilux Preta, o Corta Bunda, a Perna Cabeluda, o Velho do Saco. Estamos relativamente acostumados a isso tudo.


O que me causa espanto na Mulher da Cola é a pergunta: qual o motivo? Alguns acham que é uma socialista revoltada com a exploração do capitalismo e que faz isso para protestar contra as condições dos trabalhadores do comércio fortalezense. Faz sentido. É a hipótese preferida, pela breve pesquisa que fiz.


Outros acham que ela é ligada ao comércio de cadeados e que essa estratégia tem o objetivo de melhorar as vendas. Tomara que não, seria muito sem graça. Há quem diga ainda que a motivação é um amor que não deu certo. O homem que a deixou tem relações de trabalho com as lojas atacadas, e ela faz isso por vingança.


Até aí poderíamos percorrer alguma lógica, mas, ontem, ela colou os cadeados de uma igreja. Caiu por terra a teoria da exploração do comércio. A coisa agora passa a ter uma conotação religiosa, filosófica. Ou ela cola ao acaso?

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A ação não é localizada em um ponto só. Já me pergunto se não seria um grupo, uma confraria, As Mulheres da Cola. Os comerciantes estão muito aborrecidos, é claro. Alguns já compraram mais de seis cadeados novos. Ninguém consegue pegar a Mulher da Cola.


Qual é sua estratégia? Quem financia a compra das colas? Será que ela faz tudo sozinha mesmo ou conta com uma equipe? Será que ela tem alguma intenção? Deixo a tarefa para meus colegas jornalistas. Se a curiosidade for grande, o jeito é investigar no centro, montar armadilhas. Os vídeos com a imagem nítida da mulher estão circulando, em breve ela será identificada.


Imagino a profusão de narrativas no centro da cidade, o povo inventando versões, construindo essa personagem, criando histórias, achando graça. Nascemos pra narrar, é uma necessidade humana. Por isso estamos todos tão entusiasmados com essa personagem em busca de um autor, a mulher que um dia decidiu que colaria os cadeados na madrugada.


Torço para que fique tudo bem com a Mulher da Cola, que os comerciantes recuperem o prejuízo com os cadeados colados e que os escritores da Cidade inventem ótimas histórias sobre a misteriosa da madrugada.


Foto do Socorro Acioli

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