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Crônica em voz baixa
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Crônica em voz baixa


São poucas as oportunidades para o silêncio, essa necessidade irrefutável do espírito. O mundo está adoecido de palavras desnecessárias. Viver tem sido um desafio barulhento de zumbidos apressados, rimas feias, agressões, julgamentos, ódio, estupidez, rancor, violência verbal, maldade, preconceito. Aos gritos, aos berros.


Sempre foi assim, é o que muitos dizem. Esse planeta nunca foi um lugar de habitação pacífica entre seres humanos. A diferença é que agora as palavras são flechas, elas chegam ao destino, rasgam a carne e a alma. Para o bem e para o mal, os pensamentos estão expostos. A palavra é impalpável, mas fere como faca, atravessa como um tiro nas telas iluminadas das nossas redes sociais — muitas vezes desumanas.


Se por um lado temos tanta verborragia pulando nos aparelhos colados às mãos, cada vez mais a voz baixa da literatura é urgente, quase com força de cura. A leitura apropriada de um texto literário verdadeiro faz algo dentro de nós acordar e falar aos poucos, devagar, mansamente. Ao invés de revolver o barulho, os parágrafos em forma de arte chegam para calar o que não nos serve.


Raros autores têm essa capacidade de produzir silêncios entre uma frase e outra. Só os grandes, os melhores, os imensos. Dentro da narrativa, há o tempo que o leitor precisa para deixar que a literatura tome conta de si. Sorte é descobrir um escritor que sabe a medida certa do texto que cai na alma e faz um eco suave, de duração prolongada nos sentidos de quem lê.


O Brasil descobriu um autor assim. Seu nome é Valter Lemos, mas o seu narrador chama-se Valter Hugo Mãe, o homem que escreve em voz baixa. Seu tom não tem relação com o uso das letras minúsculas dos seus primeiros textos, tampouco com a voz do autor, quando apresenta-se em suas palestras sempre lotadas de admiradores em busca de sincera comoção. O tom do narrador que conta as suas histórias é lúcido e tranquilo, sem nenhuma pressa na observação dos poucos personagens. Um murmurar de inigualável beleza.


Demoro muito em cada livro de Valter Hugo Mãe. Seu texto pede um pacto de calma desde o início. “Não tenha pressa alguma aqui”, o papel diz. A primeira página é sempre uma porta pesada para outro lugar. Atravessar esse tempo e espaço narrado por Valter não é uma atividade para distraídos. Há sempre algo muito sério a perceber.


Acabei de começar uma nova experiência, um livro que nos convida a olhar o Japão com seus olhos e encontrar o silêncio de lá. Aos poucos leio os seus romances com a calma que merecem, com a meta de terminar todos até abril, quando Valter Hugo Mãe estará no Ceará.


Se tivesse o tempo que precisa, que história ele escreveria sobre o que somos? Onde estão os silêncios da bela e confusa Fortaleza? Onde está o murmúrio e a poesia da cidade cujo nome promete proteger?


Tenho uma concha grande que meu padrinho me trouxe de uma praia africana. Quando escuto um pouco o mar dentro dele e guardo a concha de volta, demoro muito tempo com aquele som ainda ecoando. Acho que é o mesmo que acontece quando leio Valter Hugo Mãe. O livro termina, mas persiste em nós, porque ele conta histórias com voz de mar.


Foto do Socorro Acioli

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