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Nossos mortos, por Ricardo Moura

2018-03-26 01:30:00

O título da coluna faz referência a um espetáculo teatral de mesmo nome dirigido por Fran Teixeira, professora e diretora de teatro. A obra é uma adaptação da peça Antígona, de Sofócles, para a realidade vivida pelas vítimas de chacina no Ceará, em especial aos mortos anônimos do Massacre do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no Crato. Se na tragédia grega Antígona confrontou o rei de Tebas pelo direito de que o irmão tivesse um sepultamento digno, as mulheres de nossa história lutam por reconhecimento e justiça.

 

Esse é o caso das mães do Curió, das mães do sistema socioeducativo e dos familiares que perdem seus entes queridos vítimas de chacinas ou ações isoladas. Na maioria das vezes, essas pessoas precisam provar, em primeiro lugar, que seus filhos não são “envolvidos” para que suas demandas por justiça e reparação sejam atendidas.Durante esse processo, veem-se esmagadas por uma máquina estatal bastante seletiva na sua forma de atuação.

 

Não se trata somente de uma questão de falta de recursos ou de efetivo, mas sim de uma lógica de “não querer saber” deliberado por parte das autoridades. Assim como ocorre com a família de Antígona, tais pessoas trazem consigo um estigma social que as torna menos capazes de ter seus direitos efetivados, como se fossem cidadãs de segunda classe. Não são, certamente, os “nossos mortos”. Temos maior compaixão com as vítimas de Paris e dos Estados Unidos que com as do bairro Cajazeiras.

 

A comunidade do Gereba, no Grande Jangurussu, é um exemplo da luta contra o descaso pelo poder público e pela superação da invisibilidade social. O assentamento precário se formou a partir de um grupo de catadores de resíduos sólidos que tinha o aterro sanitário como sua principal fonte de renda. Cerca de 1,7 mil pessoas vivem no local que, por causa da rivalidade com a comunidade vizinha, Babilônia, tornou-se o epicentro de uma disputa entre facções em Fortaleza.O território vem sendo ocupado pela Polícia Militar desde novembro do ano passado.

 

Nesse período, os homicídios caíram, mas uma nova onda de violência preocupa os moradores. De acordo com relatos obtidos pela coluna, o Gereba foi invadido mais uma vez no último dia 11, resultando em um morto e dois feridos. Os criminosos atiraram a esmo em um local onde havia adultos, adolescentes e crianças e uma nova ameaça de invasão causa pânico em que vive no local. Por causa disso, dezenas de famílias abandonaram seus imóveis recentemente, aumentando o número de “refugiados urbanos” em Fortaleza. A rua em que ocorreu a invasão está esvaziada.

 

De acordo com o relato de moradores, o cotidiano do Gereba nem sempre foi marcado por tanta violência: “Houve um tempo em que apesar do pouco acesso às políticas públicas na comunidade, ela resistia no seu mundo com torneios de futebol nos finais de semana, muitos bares e as conhecidas ‘serestas’, mas a cooptação das facções acabou com isso. A polícia se instalou e apesar de uma relativa diminuição dos conflitos, o cenário de terror está instaurado e ninguém sabe até quando”.

 

Além da questão da insegurança, a área no entorno do aterro sanitário está passando por um processo de intervenção urbana, com desocupação dos imóveis prevista para este ano. A indefinição sobre o que vai ocorrer é permanente. Enquanto aguardam a remoção, a abertura de ruas no local deixa as casas ainda mais vulneráveis a ataques. Ainda que expostas ao risco, as atividades cotidianas precisam ser levadas a cabo, como levar as crianças ao posto, sair para trabalhar e batalhar pelo acesso dos filhos à escola.

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Como forma de tornar pública essa situação, a avenida Perimetral foi fechada por um movimento liderado pelas mulheres do Gereba na tarde da quarta-feira, dia 14. Dentre as reivindicações, destacam-se o reforço do policiamento nas entradas da comunidade, atendimento médico semanal, priorização dos moradores no polo de reciclagem a ser criado e uma creche. Itens básicos em se tratando de uma condição melhor de vida. Além disso, as manifestantes buscam ter voz ativa, inserindo-se de forma ativa na política. O ato, contudo, foi fortemente reprimido pela PM com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Mesmo temendo, o movimento pretende fazer novas manifestações. É preciso que a sociedade saiba o que ocorre no Gereba. Mais que uma questão social, trata-se de uma questão humanitária. As nossas Antígonas precisam ser ouvidas. Antes que seja tarde demais.

 

P.S. Após temporada no Sesc Pompeia, em São Paulo, a peça Nossos Mortos, do grupo Teatro Máquina deve estrear em Fortaleza no mês que vem.

Gabrielle Zaranza

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