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Do luto à luta

2017-11-06 01:30:00

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela, em sua edição mais recente, que o Brasil registrou um recorde de 61.619 mortes violentas no ano passado. A imensa quantidade de homicídios rendeu uma comparação com a explosão da bomba atômica sobre a cidade japonesa de Nagasaki, durante a Segunda Guerra Mundial. Há uma diferença importante, contudo, no modo como as duas sociedades lidam com essa matança. Se os mortos no Japão são lembrados até hoje, esquecemos dos nossos tão logo são enterrados. O valor da vida humana nunca esteve tão reduzido, haja vista o desprezo com que os Direitos Humanos são tratados atualmente.

 

Na contramão desse movimento, estão pessoas que transformam o luto em luta e que teimam em fazer com que a história de seus entes queridos não seja silenciada ainda que sob as maiores dificuldades. A cuidadora de idosos Edna Carla é uma delas. A rotina de cuidar da casa e dos filhos foi brutalmente interrompida na madrugada de 12 de novembro de 2015 quando o filho dela, Álef Cavalcante, de 17 anos, foi executado no que se tornou conhecido como a Chacina do Curió.

 

Se os três primeiros meses foram de silêncio e dor, os que se seguiram viram o surgimento de uma rede de solidariedade que ficou conhecida como as “Mães do Curió”. “Essa luta começou quando vimos que nossos filhos não iriam mais voltar para casa, que meu filho não teria mais o direito de andar de skate e não teria mais o direito de chegar para mim e dizer que me amava. O vazio, a dor, a tristeza e a angústia fizeram com que nós começássemos a ver que não tinha mais jeito, a não ser entrar no campo de batalha e lutar por justiça”, comenta Edna Carla.


A Chacina do Curió resultou na denúncia e prisão de 44 policiais militares. Devido à complexidade do caso, o processo judicial foi dividido em três. Desse total, 34 policiais devem ser submetidos a júri popular, enquanto 10 tiveram seus processos arquivados por falta de evidências. Edna Carla, contudo, não tem dúvidas de que seu filho foi vítima da violência estatal, o que lhe causa ainda mais sofrimento: “Sinto os meus direitos violados, como se o Estado tivesse arrombado minha casa, tirado meu filho de dentro e o tivesse matado. É isso que sinto. É cruel você votar em alguém, colocar alguém no poder porque achava que era o melhor e você ver o Estado matar seu filho”.

 

Na semana em que se completam dois anos da Chacina, uma série de ações promovidas pelas Mães do Curió busca fazer com que a memória de seus filhos permaneça viva. No próximo sábado, dia 11, às 15 horas, será realizada a 5ª Marcha da Periferia de Fortaleza, cujo tema é “Por Memória e Justiça”. Segundo Edna Carla, a avenida Beira Mar foi escolhida como sede da manifestação por ser o local em que o filho dela costumava andar de skate à noite. “Meu filho era pobre morando no Curió e não deixou de ser pobre por estar na Beira Mar, mas mataram ele no Curió porque é um bairro de periferia. Quero falar às pessoas: ‘Você que é pai, que é mãe, o que você faria se a polícia matasse seu filho’? Queremos que a sociedade veja o que acontece na periferia”, critica. Além da manifestação de rua, as redes sociais ganharam um espaço de mobilização e presença virtuais com a criação de uma página no Facebook intitulada “Transformei meu luto em luta”.


O trabalho desenvolvido por tais grupos tem uma importância: eles nos lembram que estamos tratando de seres de carne e osso e não apenas dígitos. Saber que milhares de pessoas morreram não é o mesmo que conhecer a fundo a história de um jovem que gostava de skate e tinha sonhos. A despersonalização das vítimas de assassinatos tem nos tornado insensíveis a um fenômeno que já passou dos limites do tolerável. Sem que nos engajemos com maior empatia na dor e no sofrimento alheios não será possível mobilizar uma sociedade inteira em torno dessa questão.

 

A luta das Mães do Curió é uma luta por reconhecimento, um esforço para provar ao Estado e à sociedade que seus filhos possuem o mesmo direito que qualquer um e que suas mortes serão esclarecidas e os responsáveis punidos. Parece ser o básico, mas estamos falhando em proporcionar esse mínimo que seja. Sem que isso ocorra, qualquer perspectiva de melhoria efetiva na área da segurança pública não será mais que uma miragem ou propaganda. A mudança virá principalmente da atenção que dermos aos que mais sofrem com a violência letal.

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