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Precisamos falar sobre a Justiça

2017-09-04 01:30:00

Há uma percepção corrente — expressa por ministros do STF, juristas e pela própria população — de que temos um sistema de justiça criminal lento, ineficaz e seletivo. O caso de indignação mais recente com o Judiciário ocorreu em São Paulo após a soltura, sob a alegação de não ter havido constrangimento, de um homem que ejaculou em uma mulher no ônibus. Somam-se a esse episódio o escândalo da venda de liminares, a imensidão de presos provisórios e o caso Rafael Braga. Não se trata somente de responsabilizar um magistrado ou outro. A crise é sistêmica e necessita de forte mobilização social e política para que haja uma mudança no modo como a Justiça é feita no Brasil. Para tratar do assunto, a coluna entrevistou o professor argentino Leonel González Postigo, do Centro de Estudio de Justicia de las Américas (CEJA).

Especialista em reformas processuais penais, González esteve semana passada em Fortaleza participando de palestra na Universidade de Fortaleza (Unifor) sobre “Reforma dos Códigos de Processo Penal na América Latina”.


O POVO - Nosso Código de Processo Penal remonta ao período ditatorial de Getúlio Vargas. Como torná-lo mais democrático?


Leonel González - O Brasil tem o grande desafio de construir bases democráticas para a justiça penal. Em particular, faz-se necessário discutir um novo projeto de Código de Processo Penal que seja compatível com as exigências da Constituição de 1988 e os tratados internacionais que o País tenha subscrito. A introdução da oralidade como método principal para a realização do processo penal é a primeira mudança de que necessita a justiça penal para torná-la mais democrática e transparente. A sociedade deve ter a possibilidade de controlar as decisões que se tomam e ter acesso às audiências orais e públicas para tomar conhecimento do modo como se julga. Também é necessário reordenar o papel das instituições. Primeiro, há que se resgatar a figura do juiz para lhe entregar somente a função judicial sob a missão de resolver conflitos em vez de criá-los e encabeçá-los.

Segundo, os promotores devem ter a seu cargo a gestão e investigação dos casos mais prioritários, em coordenação com a Polícia. Em relação à defesa, devem ser outorgadas a ela maiores poderes processuais e de controle da atividade de persecução penal (investigação e ação penal).


OP - O senhor defende que a mentalidade inquisitória deva ser substituída por um modelo acusatório. Quais as diferenças entre esses dois modelos?


González - A principal diferença é que o sistema inquisitório tem raízes profundamente autoritárias onde o protagonismo cabe ao juiz de instrução e o acusado é tão somente um objeto de prova e a vítima praticamente não intervém. Por sua vez, o sistema acusatório é construído sob a base de um controle muito forte sobre o acusador público constituído pelo Ministério Público. O modelo acusatório prioriza as relações entre vítima e acusado outorgando poderes processuais mais amplos para que possam atuar no processo.


OP - Algumas decisões judiciais são questionadas por serem consideradas seletivas. Como o senhor avalia isso?


González - Atualmente, as decisões judiciais são tomadas de costas para a sociedade. Existe uma grande descrença da Justiça por ela se encontrar muito distante das pessoas. Há ainda um grande desequilíbrio entre as instituições, pois os juízes conservam a possibilidade de dirigir certas investigações. Por isso, pleiteamos a necessidade de que os juízes tenham apenas a função de decisão judicial e de controle da atividade do Ministério Público, que seria o detentor do processo penal.


OP - Quase metade dos presos são provisórios. Em que uma reforma do Código de Processo Penal poderia mudar esse cenário?


González - Os números dos presos preventivos na América Latina nos mostram que mais da metade dos países tem cifras de 50% de presos sem condenação e o Brasil não é exceção. Ainda que se tenha reformado o Código de Processo Penal vigente em 2011 para introduzir medidas cautelares distintas à prisão preventiva, o certo é que isso não gerou uma mudança estrutural. No mínimo, um novo projeto de Código poderia contribuir de duas maneiras: por um lado estabelecendo limites muito mais restritos para a procedência da detenção e, por outro, regulando escritórios ou instituições responsáveis pelo controle das medidas cautelares além da prisão, de modo que tanto o juiz como as partes garantam que essas medidas sejam efetivamente supervisionadas.


Há de se resgatar a figura do juiz para lhe entregar somente a função judicial sob a missão de resolver conflitos em vez de criá-los e encabeçá-los

Adriano Nogueira

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