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O dono da voz
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O dono da voz

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À memória de Rossé Sabadia

 

A voz humana é o mais belo instrumento musical que há na Terra. Criado em um lar e em uma vizinhança sonoras, natural que desde cedo me interessasse pela arte de Euterpe. Apesar de analfabeto nas pretinhas, como chamava as notas grafadas na pauta o maestro soberano Tom Jobim, sempre tive o ouvido bom para o ofício. Daí para o violão foi um pulo, sob o olhar severo de mamãe e o sorriso complacente de papai. Os cantores e cantoras exercem desde então um grande fascínio sobre mim. Cevado na música negra, minha atenção foi atraída inicialmente para o jazz e o samba. Billy Eckstine, Ella Fitzgerald, Billie Holliday e Sarah Vaughn de uma banda, e Orlando Silva, Elza Soares, Elizeth Cardoso (a tal) e Clara Nunes de outra. O mundo se me abria em sons.

 

Depois, veio o rock'n'roll. De início, os pais fundadores, e, na seqüência, o povo bom do estilo na Inglaterra. Quantos dias e quantas noites me embalaram o doce-azedo das vozes de Paul McCartney e John Lennon e o tom provocante de Mick Jagger. Do outro lado do Atlântico, Bob Dylan, Jim Morrison, Lou Reed e Janis Joplin comandavam uma grande festa sem hora para terminar. De repente, fez-se o blues, para nunca mais parar. Howling Wolf, Muddy Waters, Bessie Smith, Ray Charles e Aretha Franklin faziam um bem danado para a alma e o corpo, não necessariamente nesta ordem. Afunilando, as versões mais pesadas da arte que Elvis, Chuck Berry e Little Richard criaram: Robert Plant, David Byron, Ian Gillan e Freddie Mercury fizeram de suas vozes lendas.

 

Claro que entre tudo isso ia ouvindo o que aqui se cantava. A timidez do Chico, o coloquialismo do Caetano, a afinação do Milton e a agitação do Gil, todos de alguma forma filhos do zen João Gilberto. Nana Caymmi e a voz poderosa que herdou do pai. Zizi Possi e a sua elegância minimalista. Ney Matogrosso e seu timbre inconfundível. A santíssima trindade cearense, marcada pela doçura do Ednardo, o recitado nasal do Belchior e o vocal rascante do Fagner. Antes, enquanto Lúcio Alves e Dick Farney cantavam a Teresa da praia e Nelson Gonçalves a flor do bairro dele, me agradava o veludo melodioso que saía da boca do Agostinho dos Santos. Dizem por aí que Gal Costa vai passar o bastão a Marisa Monte, que poderia andar em melhor companhia. É, é a voz das ruas.

 

Hoje, com a canção em seus estertores finais, há a saudade da classe de um Frank Sinatra e da categoria de um Bing Crosby, algo raro ainda presente no riso maroto de um Tony Bennett. Nunca gostei de ópera, mas me calo ante o espetáculo de uma Maria Callas e a paixão de um Josep Carreras. Aborrece-me, entretanto, o péssimo show de calouros esganiçados e melosos em que se transformou a pobre televisão brasileira. Oversingers para lá e para cá em sua faina obstinada de destruir standards. Em suma: muito grito, pouco talento e nenhum sucesso. Às vezes, tenho vontade de dizer como a Nana lá de trás diz: "Pára, que meu ouvido não é penico!". O que me conforta é a voz doce de minha filhota Emília, compondo suas músicas como quem tece finos bordados.

Tudo isso só para dizer: Rossé, meu caro amigo, quanta saudade de você...

 

Foto do Romeu Duarte

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