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O algoritmo do mal e o paradoxo semovente
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O algoritmo do mal e o paradoxo semovente

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Agora que estava só em casa podia refletir sobre a sua situação. Sua mulher e seus dois filhos saíram batendo a porta. Foram para o apartamento da praia e parece que não voltam mais. Talvez as insolúveis desavenças familiares sejam o único resultado desta eleição. Foi ao banheiro e se olhou no espelho. Filho de família pobre, muita ralação, professor da universidade federal, ex-esquerdista, anti-petista. Amargava o nojo de sua origem social, construído aos poucos, como um câncer. Passou a odiar toda a esquerda, para ele corrupta e corruptora, a começar pelo prisioneiro de Curitiba. Mesmo assim, era-lhe difícil desconhecer que a instituição a que servia crescera sob o tal bandido e que não havia como governar em meio a 37 partidos sob o tacão da cruel coalizão.

 

Ainda ressoava em seus ouvidos a voz de sua filha, aos prantos: "ser contra o PT não é justificativa para votar em candidato nazi-fascista!". Não a via como o produto de uma "fraquejada", mas como alguém que amava. Sua mulher, de fala mansa e irônica, disse ao sair: "você diz odiar a corrupção, entretanto o seu queridinho passou a vida inteira num partido que é o campeão da dita cuja. Outra coisa, meu caro: as mulheres merecem respeito, coisa que o seu coiso não tem por nós. Adeus, passar bem". Seu filho, sempre calado. Sabia que ele era gay e não aceitava isso. Mas era seu rebento, carne da sua carne, sangue do seu sangue. Todos os três eram agnósticos, contudo defensores do bem, da vida e da justiça, algo que ele, fervoroso católico, agora já não conseguia ser...

 

Pôs um CD do Chico Buarque para tocar. Sim, Chico Buarque. As mensagens que atulhavam a internet reverberando misoginia, homofobia, preconceito racial e de classe, horror aos índios, negação da ditadura, elogio à tortura, defesa do assassinato e do estupro, vivas à violência e ao ódio, ampla redução de direitos sociais e privatização generalizada se entrecruzavam com as ainda vívidas lembranças daquele tempo em que participou de passeatas, levou carreira e bordoada da polícia e sentiu o cheiro sufocante do gás lacrimogêneo, tudo isso embalado pela voz tímida do grande compositor, que agora cantava Cálice. "Será que mudei ou será que fui sempre assim como sou hoje?", pensou. "Me reprimi, me escondi de mim mesmo todos esses anos?! Afinal, o que eu sou?!".

 

Liga do outro lado o amigo: "uma mentira repetida mil vezes se torna 

verdade, afirmou Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista, só que agora isso se dá mediante a potência do algoritmo criador das fake news. Sabe o que você é, meu chapa? Uma barata adoradora do deus Baygon. Apoiou o golpe e agora bota ficha nessa vitrola odienta de uma nota só. Se eu fosse você, daria uma olhada no Ensaio sobre a Cegueira" do Saramago". 

 

Desligou o celular no meio da risada do camarada. Olhou para a foto da família reunida sobre a estante e chorou. Sentia-se atravessado pelas suas inúmeras contradições, jogado em seus abismos. Então cantou o artista carioca de olhos cor de ardósia: "e agora eu era um louco a perguntar o que é que a vida vai fazer de mim?".

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