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O insone e a chuva de caju
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O insone e a chuva de caju


Sem poder conciliar o sono, levantou-se da cama. Ao lado, sua mulher dormia mansamente. "Mansamente com seus demônios", pensou ele. Sem fazer qualquer ruído, foi ter à sala. Preferiu não ligar a televisão. Lá fora, um fraco luar esboçava no muro lateral, de forma fantasmagórica, as sombras dos arbustos do jardim. Preocupava-lhe a situação do país. Apesar de saber que iria lhe fazer mal, que iria lhe embrulhar o estômago, assistiu a todas as entrevistas dos candidatos à presidência. Descaramento, bravatas, cinismo, preconceito, arrogância, vira-latismo, rendição, mentiras, vazio. O terrível vazio. O baixíssimo nível da política. A total falta de perspectivas. A ronda noturna e o seu apito de "tudo vai bem". "Vai bem?", disse. A muriçoca e o seu cruel violino.

 

A direita saindo do seu sarcófago e contagiando corações e mentes. A tal aliança executiva, legislativa, judiciária, midiática e plutocrática responsável pela ilegal alteração da ordem democrática e por ter jogado o Brasil no buraco em que se encontra. A reversão de todas as conquistas e expectativas. A triste e inexplicável apatia dos milhões de prejudicados. A venda diária de Pindorama na bacia das almas a preço de banana. A realidade, esse rico livro que poucos conseguem ler, interpretar e intervir em seu enredo. "Parece que a saída para o país voltou a ser o aeroporto. Lisboa, Montevidéu, Buenos Aires ou Cartagena de Índias?", brincou, conjeturando sobre possíveis destinos. Se isso não fosse o roteiro de um feroz pesadelo, o que mais seria? Alto, o miar dos gatos no cio.

 

"As pessoas estão lá fora, aos gritos, para muitos, inaudíveis", refletiu. "Claro, a angústia de se saber à mercê da bandidagem em suas diversas versões, do assalto nosso de cada dia, da possibilidade de não voltar para casa vivo, dos muitos e caros impostos e do quase nenhum retorno, da ausência de chances faz delas presas fáceis do discurso reacionário-messiânico". Pôs a culpa na falida educação, a que serve apenas para passar no vestibular e catapultar biografias nos currículos acadêmicos. "Razão tinha Edmund Burke: um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la", ruminou. As lições de um passado recente parecem não ter sido devidamente digeridas ou mesmo sequer conhecidas. "O Bananão e seu primário mal feito, diria Augusto Pontes".

 

Súbito, no dealbar da manhã, afável, de gota em gota, caiu a chuva de caju. "A sábia natureza", comemorou. "A água desce do céu em leve poeira, logo cedo, driblando a evaporação e para não derrubar as flores e o seu pólen". Sentiu as árvores fazendo amor, banhando-se juntas, misturando suas intimidades. Mais um pouco e o dia se firmaria com o seu carrossel de compromissos, contatos, chateações e promessas não cumpridas. A vida como ela é. "Interessa-me mais como ela poderia ser", ousou, vendo-se já como um novo Américo Pisca-Pisca, um invocado e neo-lobatiano reformador do mundo. 

 

Macunaimicamente e sob o efeito dos afagos do doce chuvisco, entretanto, bocejou: "Meu Deus, ai, que preguiça...". As luzes artificiais davam lugar à luz solar. Era tudo outra vez. 

 

Por Romeu Duarte

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