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Que tiro foi esse?
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Que tiro foi esse?


À memória de Marielle Franco


Acordou cedo naquela quinta-feira, muito antes do que costumava se levantar. Enjoada, sentiu que alguma coisa não estava bem. Deu partida no humilde computador comprado à prestação para se atualizar. Foi quando leu, incrédula, a terrível notícia do assassinato da vereadora carioca. “Sabia que tinha algo errado, minha intuição não falha”, pensou ela. “Quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte”. O verso, como um cometa, cruzou o seu pensamento. Abriu a geladeira vazia. Sua fome perdera-a por completo. Nunca tinha ouvido falar da finada. Soube que era negra, nascida e criada na Favela da Maré, mãe, socióloga, homossexual e atuante defensora dos direitos humanos, além de avessa à intervenção federal no Rio de Janeiro, agora num beco sem saída.


“Talhada a ferro e fogo nas profundezas do corte que a bala riscou no peito”. O carro varado de projéteis, os buracos numerados, os vidros estilhaçados, vidas silenciadas. Dirigiu-se ao quarto. Viu-se nua no espelho. Negra, magrinha, de fracas ilhargas, nádegas batidas, seios pequenos, o sexo um inédito ponto de exclamação. 23 anos e virgem. Não sabia ainda o que fazer com o próprio corpo, se entregá-lo a macho ou fêmea ou aos dois. Professora da rede pública municipal, vivia com a mãe numa casinha do Parque Araxá. Começou a trabalhar bem nova ajudando a velha num negócio de salgado, formou-se em Pedagogia e, depois de muito ralar, passou a dar aula. “Dizem que tive sorte, é muito engraçado”. Conhecera todo tipo de preconceito, do suave ao desumano.

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“Quem cala morre contigo, mais morta que estás agora. Relógio no chão da praça, batendo, avisando a hora que a raiva traçou no tempo”. Vestiu-se para dar conta do seu ofício diário. No ônibus lotado, o assunto era só aquele. “Morreu porque defendia bandido, bem feito!”, disse uma senhora gorda, aboletada no banco da frente. “Nada disso, dona”, retrucou-lhe um estudante em pé, “morreu porque denunciou a ação das milícias, da polícia, das facções e do narcotráfico nas favelas do Rio”. Acompanhando o debate em silêncio, viu o coletivo passar em frente à Praça João Gentil, no Benfica, onde, há poucos dias, deu-se uma chacina que abalou a Cidade. “Poderia ter sido comigo”. “Tem que por o Exército na rua!”, gritou a dona. “Bote só na sua casa”, disse o aluno.


“No incêndio, repetindo, o brilho do teu cabelo. Quem grita vive contigo!”. A tal letra da canção que ouvira numa festa do centro acadêmico há alguns anos ainda ressoava na sua cabeça. “Ela carregava em si toda a complexidade e as contradições do meio em que viveu. Não é um cadáver comum, é um cadáver político. Que fique como um exemplo”, resignou-se. Mas havia a vida para tocar. Na sala de aula, falou sobre a Quaresma e seu significado para várias doutrinas cristãs, lamentando a ocorrência de fatos tão tristes neste período. Ao final da lição, como de hábito, fez a chamada, convidando os estudantes a dizerem seus nomes. Logo no início, uma menina negra e esquálida, lá no fundo, falou: “Esperança, presente!”. Em lágrimas, correu e abraçou-a. Chovia.

 

Foto do Romeu Duarte

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