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Mareado
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Mareado


A Dodora Guimarães


Acordou com os gritos mercantis do vendedor de merenda: “Quer lanche? Quer nada...”. Viu-se todo molhado, coberto de areia e algas, o cabelo e a pele duros de sal, sem os sapatos, sem o relógio e sem a carteira. “Égua”, admirou-se, “até onde me lembro, fiquei com aquela criatura na beira da praia, curtindo, tomando cachaça, namorando, beijinhos e beijinhos sem ter fim. O que estou fazendo capotado na calçada deste condomínio?!”. Olhou em volta e viu que tinha como companheiras de aventura algumas pedras que foram arrancadas do molhe e levadas pelas ondas até o outro lado da rua. “É para dar graças a Deus eu não ter morrido afogado”, benzeu-se, quando notou uma pequena multidão se formando em torno de si para rir do seu infortúnio. “Só dá hiena...”.


Levantou-se aos poucos, juntando o que de si restara para pegar de mansinho o beco, não sem antes levar uma sonora vaia dos circunstantes. “Príncipe Namor dos pobres!”, “Arreda, bicho de chifres marinho!” e “Vai, baiacu!” foram alguns delicados epítetos que aquele bando de desocupados colara às suas costas. Não se lembrava da data do calendário. Sol a pino, uma sede do cão, a fome pregando a barriga dele no espinhaço. Olhou o oceano. As vagas ainda iam altas, majestosas, explodindo em espuma na arrebentação. Muretas em ruínas, bancos destruídos, passeios rachados, carros arrastados, vias impedidas. “E aí, meu caro?”, perguntou ao mar, “que ressaca a nossa, não?”, querendo saber onde tinha estacionado a viatura. “Deve estar lá na Barra”, riu.

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Desistindo de procurar o próprio veículo (“ele é igual a cachorro, volta para casa sozinho”), pôs-se a andar a esmo, sob a forte chuva que agora caía, impressionado com a destruição em seu caminho. Alguns surfistas passaram comemorando as ondas gigantes. Nunca fora muito de mar, era este aqui e ele lá, sem essa de tchibungos e splashs. Ainda conjecturava sobre a sua sorte em ter escapado ileso, apesar de liso, do recente cataclismo. “Quem sabe não fui um peixe na encarnação anterior?”, brincou, assistindo ao espetáculo moleque da garotada solta na buraqueira sob o dilúvio. Os alagamentos das coxias e o cheiro de podre dominavam o ambiente. “Enchem as galerias de lixo para depois reclamar...”, falou ao coleguinha, Gene Kelly cafuçu singing in the rain...


Ao bater com os naufragados costados na Praia de Iracema, defronte ao fracassado Acquario, lembrou-se da dona com quem estava antes da terrível inundação. “O que houve com ela? Teve a mesma sina que eu?”, indagava-se, quando tropeçou num objeto grande e escuro, meio que enterrado na areia da praia, arrancando o chaboque do dedão. Abaixou-se para estancar o sangue que saía do ferimento, ao tempo em que alguém bradou: “Viva! O bebinho aí achou a Femme Bateau do Sérvulo Esmeraldo! Amigo, você achou a escultura do barco-mulher!”. O alerta do tal crítico de arte de araque fê-lo pirar de vez. Olhou para o chão e viu onde metera o pé. “Cara”, a fala pastosa, “procuro uma mulher que o mar levou. Posso usar esse barco aí para encontrar ela? Vá lá...”

 

Foto do Romeu Duarte

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