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Apesar de tudo, é natal
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Apesar de tudo, é natal


À memória de Pedro Carlos Álvares


Andei circulando pelo Centro de Fortaleza neste quente período natalino. De manhã, à tarde, no começo da noite, nos fins de semana. Procurando, talvez, encontrar alguém há muito distante de mim: eu mesmo. Saudade daqueles tempos quando o bimbalhar dos sinos do Coração de Jesus (e não a habitual gravação dos carrilhões de São Pedro de Roma...) entrava pela 4 e 400 ou pela Loja de Variedades, atravessava a Flama (”símbolo de distinção”) e ia dar com os sonoros costados na Top’s, um pouco antes da sessão do Cine Diogo. De repente, caiu-me a ficha: não estaria aqui repetindo o gesto do personagem do soneto machadiano que, “em vão lutando contra o metro adverso”, grafou na página branca um único verso: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”. A ver, pois.


Acho que tanto eu quanto a data em que se comemora o nascimento do Nazareno mudamos e muito ao longo destes anos todos. De minha parte, um certo desencanto, ao constatar que o peru, a sidra (objeto de recente gourmetização, aliás) e a rabanada têm mais fãs do que o sofrido exemplo do aniversariante. Do outro lado, a transformação da festa num feérico evento comandado unicamente pela mão invisível (visível) do deus Mercado. Claro que a esta altura do campeonato não dá para reclamar a volta da ceia farta na calçada dos lares suburbanos e do desembrulhar dos presentes sob a árvore falsa de azevinho, bolas vermelhas e algodão. Um pouco de solidariedade já estaria de bom tamanho. Nesta quadra desigual, talvez seja pedir demais, não?


Mas, voltemos ao meu querido Centro de açúcar, o lugar mais lisérgico desta Loura Abirobada do Sol. Sob a neve (espuma) que cai na Praça do Ferreira, uma multidão de Papais Noéis percorre suas estreitas ruas, desviando das bancas dos camelôs, alguns também vestidos de Papai Noel. Gordos, magros, grandes, pequenos, de bicicleta, de trenó, de figurino misturado ao de Lampião, de encarnado ou azul, gay, palhaço, a variedade é imensa. Deve ser uma barra pesada aguentar esse trampo, o cetim colado no corpo, um calor dos diabos, o suor escorrendo pela pele, descendo pelo rego das nádegas e ensopando os pés metidos nas botas de plástico. Mesmo assim, ainda fazem as perguntinhas cavilosas de praxe: “O espírito do Natal já entrou em você?”. Depois, a galhofa.


Dar uma de Santa Claus hoje é profissão de risco, para o bem e para o mal. No interior de São Paulo, um voluntário trajado de Bom Velhinho quase morreu apedrejado por um grupo de crianças quando informou que os doces que distribuía haviam acabado. Um outro, no Rio de Janeiro, recebido com alegria no magazine elegante, anunciou o assalto e rendeu os presentes. Preso mais tarde, por pouco não foi linchado. Parece que as tradições foram criadas para ser avacalhadas no Brasil. Enquanto o sol se esconde, nas sacadas do velho hotel surge uma garotada entoando antigas canções de Natal.

O menino que fui um dia (se é que fui), vergado de lembranças, me invade e acode nesta hora em que, como disse Assis Valente, “felicidade é brinquedo que não tem”...

Foto do Romeu Duarte

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