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A morte no Ceará tem rosto de mulher
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

A morte no Ceará tem rosto de mulher

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Quando olhamos para o retrovisor de 2018 no que se refere à área da violência e da criminalidade, um dado chama muita atenção: nunca tantas adolescentes e mulheres foram assassinadas em um único ano. A coluna já alertava para isso em fevereiro quando foram dados os primeiros sinais de que o perfil das vítimas de homicídio no Ceará estava mudando de forma drástica. Nos últimos três anos, contudo, o número só aumentou, com muito pouco sendo feito para alterar essa situação. Na comparação com 2016, os homicídios de mulheres dobraram: passando de 210 para 410, até novembro de 2018.

 

Feminicídio

 

O Fórum Cearense de Mulheres vem atuando ao longo de todo o ano com o objetivo de tentar reverter esse quadro. Em setembro, mais de 300 cruzes foram colocadas no aterro da Praia de Iracema representando cada mulher morta no Estado até então. Neste mês, uma audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa (ALCE) abordou o tema sob forma de denúncia.

 

Um dos grandes impasses quando se trata de homicídios contra mulheres é a dificuldade de se tipificar as mortes como feminicídio, crime em que o fato da vítima ser do gênero feminino é decisivo para sua morte. De acordo com o Fórum, há uma subnotificação de casos de feminicídio no Ceará. Até novembro, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) contabilizava 24 ocorrências em 2018. Com base em um levantamento próprio, a entidade afirma que esse número é bem maior. Conforme os cálculos do Fórum, a quantidade chega a 52 em um universo de 209 casos pesquisados, ou seja, o cenário pode ser ainda mais grave, haja vista que nem todos os assassinatos passaram por essa análise.

 

Definir um crime como feminicídio não é apenas uma questão de preciosismo teórico. É tornar explícito um conjunto de relações sociais de dominação masculina que contribuem para a violência contra as mulheres. Sem que isso seja reconhecido e evidenciado, uma série de microviolências cotidianas permanecerão ocultas, perpetuando assim as condições para que esposas, companheiras, namoradas e colegas de trabalho sejam sempre tratadas como um objeto para que os homens despejem suas angústias e frustrações, chegando algumas vezes à violência letal.

 

Quantas mortes têm como narrativa a recusa do companheiro em aceitar o término de um relacionamento? O que dá a ele o direito de tirar uma vida humana senão a percepção de que os corpos femininos "pertencem", por algum direito extraterreno, ao homem? Como se vê, combater as raízes do machismo estrutural que se concretiza sob a forma do feminicídio é algo que vai além do alcance da ação da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social.

 

Trata-se de construir uma política de Estado que reúna todas (por que não?) as secretarias em prol de um movimento no sentido contrário ao que se desenha em nível nacional, em que os retrocessos na área da igualdade de gênero só se acumulam.

 

Um ponto de partida para mudar esse quadro é a educação. É preciso que as escolas contribuam para que se dissemine uma prática pedagógica que não seja baseada na hierarquia entre os gêneros. A masculinidade tóxica, assassina e suicida se manifesta nos corredores escolares: nas disputas para saber "quem é mais homem", nos discursos de ódios nada inocentes sobre colegas homossexuais e nos processos iniciais de objetificação feminina. Para aqueles que acham que o que eu digo é um exagero ou coisa de "esquerdista", segue um dado bem revelador do descaso com que lidamos com essa questão: 98 meninas de 13 a 19 anos foram assassinadas este ano (24% do total).

 

Embora o "envolvimento" com facções criminosas - seja lá em que nível for - muitas vezes assuma o caráter de uma sentença de morte, adolescentes e mulheres vítimas do crime organizado padecem de um sofrimento extra: não raro são torturadas ou violentadas sexualmente antes de serem executadas, além de serem chamadas pejorativamente de "marmitas" pelos membros da organização.

 

Viver em um estado que bate recordes em feminicídio é um terrível legado tanto para os governantes quanto para a sociedade. Amparado pelo otimismo que marca a passagem de um ano para outro, a coluna espera que a situação das mulheres no Ceará possa vir realmente a ser uma prioridade na gestão 2.0 de Camilo Santana. Para fazer a coisa certa, nunca é tarde demais.

 

P.S. O primeiro dia de 2019 marca o aniversário do covarde assassinato de Stefhani Brito, vítima de feminicídio que teve seu corpo exposto na garupa de uma moto na lagoa do Mondubim. Que o novo ano traga justiça e reparação.

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