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Seguindo o rastro das armas de fogo I
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Seguindo o rastro das armas de fogo I


Follow the Money” (siga o dinheiro) foi a dica do informante “Garganta Profunda” aos repórteres do Washington Post para que pudessem avançar na investigação do escândalo do Watergate, que culminou na renúncia do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.Com algumas adaptações, essa é a mesma recomendação para quem pretende compreender o funcionamento do tráfico de armas de fogo no Brasil.


Monitorar a circulação e gerenciar o uso de armamentos em um país de extensão continental representam um desafio imenso. O problema começa pelo fato de o Brasil contar com dois sistemas de controle: o Sinarm e o Sigma. O Sistema Nacional de Armas (Sinarm), administrado pela Polícia Federal, permite a aquisição de até duas armas para empresas de segurança privada, forças de segurança civis e pessoas físicas que desejam possuir armamento para fins de defesa pessoal. O Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), por sua vez, é controlado pelo Exército Brasileiro e se destina a militares, policiais militares e civis que sejam colecionadores, atiradores e caçadores (CAC). O Sigma será analisado na próxima coluna.


Enquanto sabemos com detalhes sobre as entranhas do tráfico de entorpecentes, o mercado de armas permanece opaco, inacessível e letal. Desvelar o sinuoso caminho percorrido por revólveres, fuzis e metralhadoras desde sua fabricação até chegar às mãos de criminosos é uma tarefa complexa. Trata-se de um verdadeiro quebra-cabeça com muitas peças faltantes.

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O Instituto Sou da Paz publicou recentemente um relatório sobre as armas de fogo apreendidas no Ceará entre 2015 e 2017 a partir de dados próprios, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Trata-se de um excelente ponto de partida para entender as dinâmicas do mercado ilegal de armamentos no Estado. Conforme o estudo, 84% das armas de fogo apreendidas possuem cano curto (revólveres e pistolas), 73% dos calibres são de uso permitido e 81% têm origem nacional. Esse é um dado fundamental, pois coloca em xeque a argumentação de que as armas viriam de fora do país. Se elas circulam no próprio território nacional, é preciso identificar essas rotas e reforçar a articulação entre as polícias civis para que se possa interromper o fluxo.


Do universo de armas pesquisadas, 1.984 possuíam registro no Sinarm. O Ceará lidera o número de registros com 44%, enquanto os estados vizinhos (Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba e Piauí) somados totalizam apenas 11%. São Paulo (14%) e Distrito Federal (8%) possuem maior representatividade nessa lista, demostrando que o caminho que as armas percorrem é extenso.


Em relação à idade, o arsenal é, em sua maioria, antigo: 53% têm data de fabricação anterior a 2000. O resultado indica que ainda há em circulação muito armamento produzido antes de o Estatuto do Desarmamento entrar em vigor. Além disso, a durabilidade das armas é um fator a mais de preocupação, haja vista que seu uso pode se estender por décadas.


Do armamento que constava no Sinarm, 71%estavam registrados em posse de seus proprietários, enquanto 13% haviam sido furtados e roubados. As armas pertenciam, em sua maioria, a empresas de segurança, vigilantes, profissionais e forças de segurança (30,9%), seguidos por comerciantes, vendedores, lojas e indústrias de armas (16,5%). Não há informação alguma de posse sobre 27,8% do armamento apreendido, o que demonstra a precariedade dos nossos sistemas de controle.


O dado que mais chama atenção, no entanto, é o que segue: 11% dos armamentos foram registrados como “apreendidos”, ou seja, 229 armas de fogo estavam novamente em circulação após ficar sob a custódia do Estado. Como saber se agentes públicos de má fé desviaram o material custodiado ou se o armamento foi roubado de alguma delegacia ou fórum?


A gestão das armas apreendidas representa, certamente, um ponto muito vulnerável nesse sistema. Nesse quesito, soubemos na semana passada que a Superintendência da Polícia Federal no Ceará amarga o primeiro lugar no ranking de maior quantidade de munição extraviada do Brasil. Entre 2006 e 2017, mais de 1,3 mil projéteis que estavam sob a responsabilidade de policiais federais desapareceram sem deixar vestígios. Nesse mesmo período, 23 armas sumiram. Descobrir o que ocorreu com esse armamento é uma tarefa urgente. O desvio de armas quase nunca é um fato isolado, mas sim um modus operandi.

 

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