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Do crime que nos habita
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Do crime que nos habita


Tudo começou de forma muito discreta, há dois anos. Cartazes pregados em postes nos bairros Caça e Pesca e Vicente Pinzón traziam informações sobre uma guerra envolvendo a Polícia e grupos criminosos locais. O texto dizia que os moradores deveriam colaborar mantendo-se em silêncio, sob o risco de serem tachados como “caboetas” (informantes) e vindo a sofrer as consequências disso. Uma expressão ilustrava bem a situação de vulnerabilidade em que a população estava inserida: “Lembre-se que a polícia vai embora e você fica”. Na época, o Estado passava por um refluxo nos índices de homicídios e “paz” era a palavra de ordem entre gangues rivais. Não havia entre a cúpula da Secretaria da Segurança Pública (SSPDS) a noção da ameaça que esses grupos viriam a se tornar. Pelo menos, isso não era expresso publicamente. O tom, quase sempre, era de menosprezo.


Aos poucos, os cartazes foram aposentados e os muros começaram a ser pichados com siglas e códigos numéricos representando a identidade das facções (a nova denominação ao que se convencionava chamar de gangues), bem como um conjunto de normas de regulação social válidas tanto para a população quanto para os demais criminosos não-faccionados. Não se tratava apenas de recomendações, mas de determinações cuja garantia se ancorava no emprego da violência brutal como castigo e pena. Trata-se de uma tarefa bastante árdua encontrar alguém que ande por esta cidade e não tenha se deparado com tais inscrições em seu trajeto.


Se de início o objetivo era consolidar no imaginário social a representação de que havia grupos criminosos organizados em facções, o processo de comunicação foi se simplificando cada vez mais. A assinatura mencionava somente um sujeito coletivo indeterminado conhecido como o “Crime” e isso já era o bastante para o fortalezense compreender a fria em que estaria se metendo se descumprisse as regras ali expostas.


Recentemente, a SSPDS divulgou que estava substituindo as marcas da presença do crime organizado nas paredes e muros da cidade por brasões governamentais e logos do Ceará Pacífico. Em seu Instagram, o secretário André Costa revelou que os sinais espalhados pelas facções auxiliaram o setor de Inteligência a “delimitar essas áreas e identificar pessoas. O que parecia um ponto forte está se mostrando a fraqueza deles”. A afirmação do secretário demonstra que, para o Governo do Estado, tão importante quanto o combate à criminalidade é a disputa entre narrativas. As pichações e ameaças espalhadas pela cidade tiveram um fim específico: construir uma identidade, impor regras e demarcar limites territoriais, ou seja, criar as bases para a implementação de um território autônomo em relação ao poder estatal. Não se tratava de fazer nada em segredo, muito pelo contrário. Quanto mais publicidade foi feita, mais esses grupos se fortaleceram.


Por óbvio que a substituição de uma tintura pela outra em nada altera o cotidiano de medo vivido pelos moradores. Embora não estejam mais visíveis, o risco do não-cumprimento das ordens permanece. As demais ações citadas por André Costa na mesma postagem talvez surtam mais efeitos, como aumento no policiamento ostensivo, ações mais focadas das delegacias distritais e políticas de prevenção social, com fortalecimento da ação comunitária.


Bem mais desafiadora que uma ação de limpeza de muros é erradicar a presença do criminoso que habita em nós, ou seja, nos órgãos de segurança, nas instituições públicas e na sociedade em geral. Quando compreendido como um sujeito coletivo, o crime não é um ser puro formado apenas por quem está à margem da Lei, mas se confunde e se entrelaça por vezes até mesmo com aqueles que são pagos justamente para fazer com que a Justiça seja feita.


A criminalidade só se organiza quando conta com a conivência e apoio dos agentes públicos. Nesse quesito, não há instituição que passe incólume por todo esse processo. Prisões por denúncias de colaboração com facções já atingiram membros da Polícia Militar, Polícia Civil, Exército e até mesmo do poder judiciário. O caso mais recente foi registrado na Secretaria da Justiça e precisa ser devidamente elucidado. Embora a ostentação pública do crime cause incômodo e constrangimento, seus traços velados no interior do Sistema de Justiça Criminal são os que merecem maior preocupação.

 

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