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Amor Sombrio II
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Amor Sombrio II


"Deixe-me, pelo amor de Deus. Me esqueça, mulher"! Taveira mais uma vez despertava delirante, em suores, enlouquecido. Há mais de uma semana não dormia uma noite sequer, seduzido pela inquietante e noturna visita de Laura, em sonho, a proporcionar-lhe prazeres antes inconcebíveis. Porém, diante daquela sua dominação, vivia exausto, doído, sem conseguir concatenar qualquer ideia ou escrever qualquer coisa. Cedo, diante do espelho, a revelar o seu péssimo estado, ainda podia ouvir, pela enésima vez, a voz de sua amante onírica a sussurrar "Eu te amo tanto"! Arrastava-se sonolento à calçada naquela manhã, quando cruzou com uma mendiga de medonha aparência a esmolar sentada e encostada à parede. Ela o pegou pelo tornozelo e apontando para o chão, anunciou: "Hômi, cê tem mermo duas sombras?" Taveira, no susto, não conseguiu acreditar: estavam ali, sim, impressas na calçada, as ditas sombras apontadas pela mulher. Saltou para trás, tentou chutá-las, sair de cima delas, mas era impossível se libertar daquilo. A mulher ria: "Cê negou um amô debaixo de luar, pisando na sombra dela, num foi?" Meneou a cabeça como coisa sem jeito: "Nunca mais que ela vai se esquecer docê..."

 

Ainda admirado com o fenômeno e, de assalto, relacionando-o com a suas noites cativas, desesperado, pôs-se a sacudir a velha: "E o que é que eu faço, minha senhora? O que eu devo fazer para me livrar dessa, dessa... maldição?"

 

A mulher o rejeitou furiosa. Como se enojada, olhou-o de cima abaixo: "Ela deve de tá morrendo, num sabe? Uma pessoa sem sombra num é nem mais gente. Oxe, devolve pra ela o que cê roubou!" "Mas devolver o quê? A sombra? Tenho que devolver a sombra dela?" A velha acocorou-se novamente sobre os tornozelos magros, colocou a mão em pala na testa e murmurou com estranho desânimo: "O seu coração!"

 

Taveira sentiu o golpe no peito. Durante os próximos dias, evitava caminhar sob o sol. No escuro do quarto, chorava ao vê-la entrar pela janela, deitar sobre ele, roçar o rosto ao seu, abraçando-o, a revelar sempre como em uma primeira vez: "Eu te amo tanto!"

Não aguentou mais. Mesmo sem saber o que iria fazer, se pedir perdão ou ameaçá-la, ainda cedo, partiu para o sítio onde a conheceu. Desceu na rodoviária e caminhou algumas léguas de terra batida, aterrorizado, assistindo àquelas sombras projetadas a caminhar lado a lado, se encontrando a cada passo.

 

Chegando, abriu a porteira e bateu palmas. Não sendo recebido por ninguém, entrou na casa. O pai de Laura estava na sala, sentado em sua poltrona, alheio. Mesmo sendo chamado, não emitiu um som, nem único movimento. A sua esposa, com olhar quebrado, surgiu à porta da cozinha: "Ele não fala, não vê, não faz mais nada desde que a nossa menina se foi. Você não imagina como é duro para os pais ter que enterrar a própria filha". Na sequência, sentada ao lado do marido, contou da moléstia repentina que a tomou trágica e fatalmente em poucos dias. "O doutor nunca vira aquilo". Nisso, Taveira, mudo, se dirigiu à cozinha, passou um café no pano, com estranha habilidade de costume, trouxe ao casal, e os amparou até o resto de seus dias. Às noites de luar, poderia ser visto, à varanda, bordando qualquer coisa e admirando as teias de aranhas que cresciam e encobriam completamente toda a casa.

 

Foto do Raymundo Netto

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