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Amor Sombrio I
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Amor Sombrio I


"Você já vai embora? Assim?"

 

Estava insegura, mas tinha que abordá-lo antes que ele saísse por aquela porteira. Era noite e ela sabia: ele teria que caminhar muito até a estação. Sem entender o porquê da pergunta, o rapaz acomodou a mochila às costas: "Sim, claro. Você não sabia?"

 

Ofegante, ela mordia o lábio inferior, buscava as pontas dos dedos e das unhas e, depois de apertar os olhos, o fitou novamente, quase não conseguindo lhe falar: "Não está se esquecendo de nada?". Ele colocou as mãos nos bolsos da calça, da jaqueta, e sorriu: "Não, creio que não...". Então, trêmula, pegou a mão dele, passou em seu rosto, acolheu entre suas mãos em um abraço no peito e chorou: "E de mim? Você não está se esquecendo de mim?".

 

Taveira era jornalista. Designado a fazer uma matéria no interior, hospedou-se em uma fazendola de um casal de agricultores. Eles eram idosos e tinham como única filha e companhia uma moça de 18 anos, Laura, cuja maior parte da vida estava cerceada ali, como aquele terreno de seus pais.

 

Ele, por indicação e por ser útil à matéria encomendada, quedou-se naquele sítio. Durante 15 dias, seria Laura quem o atenderia em suas necessidades, fazendo-lhe ou lhe trazendo as refeições, preparando seu banho, lavando e passando-lhe a roupa, trazendo-lhe o gostoso café passado no pano, segundo a mãe, a sua especialidade. A moça, quase muda, por vezes, o acompanhava quando precisava se dirigir a qualquer lugar naquela região. Na verdade, a sua presença silenciosa e esguia por pouco não era notada por Taveira, sempre concentrado e envolvido em sua escrita ao computador. Entretanto, quando ele precisava, logo a percebia à sua volta, fazendo qualquer coisa, fosse varrendo, fazendo a cama, bordando, lendo ou mesmo não fazendo nada. Estava sempre ali, orbitando, à disposição dele. Mesmo assim, ele nunca imaginaria que, por trás daquela dedicação, pudesse haver qualquer sentimento. Até que, naquele instante, diante dele, ela, entre soluços suplicantes, lhe confessaria, arrasada: "Eu te amo tanto!" Impactado, ele, que só conhecia o amor de oitiva, paralisou. As nuvens escuras se abriram, revelando uma lua gigante a incendiar um clarão feito holofote no rosto dele, quando respondeu a ela: "Mas eu não amo você..."

 

Como lancetada pela dureza fria daquelas palavras, tomada de vergonha, ela deu meia-volta e, chorando, correu desabalada ao jardim da sua casa. Sem saber o que fazer, ele chamou por seu nome, uma ou duas vezes, quis acompanhá-la, mas achou por bem abrir a porteira e partir. Tinha que partir.

 

Na noite seguinte, em seu apartamento, ao deitar, uma surpresa: Laura lhe apareceu em sonho, nua e linda. Num absurdo, podia sentir o calor de seu corpo, de seu hálito, de seu beijo. "Eu te amo tanto!", repetia ela, com olhar fixo ao seu, enquanto movia lenta e precisamente o seu corpo. Ele não conseguia entender, mas aquela moça, pela qual não sentia nada, o possuía completamente. Estranhava, porém, não querer acordar, e se entregava àquela volúpia a lhe tomar o espírito e a razão. Como fora possível não perceber tanta doçura, tanto encanto nela? E, a partir daquela noite, em todas, todas as demais, nunca mais conseguiu dormir sem ser completamente arrebatado por ela, a extrair dele todos os seus desejos mais secretos. (Continua na coluna do dia 27/8)

 

Foto do Raymundo Netto

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