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Casamento
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Casamento

 

Na igreja, as pessoas se reuniam na organização de um bazar para angariar recursos à paróquia. Laura carregava caixas, quando foi abordada por dona Neide, uma das beatas, que percebeu-lhe as mãos: "Você não é casada, minha filha? Cadê a sua aliança?"

Surpresa, Laura apenas balbuciou um tímido e não convincente "Perdi". Neide, ao contrário, bem vivida e maliciosa, olhou a jovem com desdém e, espalmando a mão esquerda bem à frente de seu nariz, projetou a volumosa aliança dourada: "Pois eu sou casada de papel passado e com as bênçãos de Nosso Senhor. Não sou mulher de sem-vergonhices, não."

Laura, constrangida e diante de outros olhares fuzilantes, pediu licença e saiu pela escadaria aos prantos. Sim, ela não era casada e isso, ninguém sabia, lhe era uma tremenda frustração. Há anos, conhecera Serafim e logo se apaixonara. Ele propôs: "Amor, vamos morar juntos?" Ela espantou-se. Queria, mas não queria assim. Sonhava-se em véu e grinalda de flores de laranjeira, vestido alvo de cauda longa, diante do padre e da família, com direito a daminhas e pajens, sininhos, chuva de pétalas de rosa e de arroz, mas Serafim insistia: "É uma festa apenas, meu amor. O que é uma festa?"

Laura, mesmo com rigorosa formação religiosa, hesitava. Afinal, era o Serafim "Um fofo!" Até que um dia, convidada a ser madrinha de um casamento de amiga, enamorou-se por tudo: pelas cores e luzes, buffet, balões de gás, discursos e juras de amor eterno, brindes, um milhão de fotos e um buquê. Chorava como se aquela fora a sua tão desejada cerimônia matrimonial. Natural sair de lá decidida a colocar o rapaz na parede: "Só casando!" Entretanto, ele, sofrendo o diabo, afirmou: "Então você não me quer... quer a festa!" Laura, sentindo-se vista de forma tão fútil, irritou-se, gritou aos céus de relampos e temporais: "O que eu quero é não vê-lo nunca mais!"

Parecia uma eternidade, mas poucas semanas depois, Laura soube que a amiga, recém-casada, fugira com um ex-namorado. Perplexa e sem pensar, procurou Serafim: "Como pôde? Tudo tão lindo, perfeito, e ela foge... assim?" Ele, um inveterado saudoso e perdido em amores, lhe estampou um beijo de novela: "É só uma festa, meu amor... Uma festa..." Então, sem adiar mais, Laura se entregou a Serafim. Com pouco, alugaram uma casinha e passaram a viver juntos. Porém, mesmo amada e contente, ela tinha suas vergonhas e, daí, naquele mesmo dia em que foi encurralada pela beata, perguntaria ao Serafim: "Querido, um dia nós vamos nos casar?" "Só se for de novo", respondia ele, sem tirar as vistas do jornal. "E Deus, as suas bênçãos?" Ele beijava delicadamente a sua mão e sorria: "Somos abençoados, meu amor. Eu te amo, você me ama. Deus é amor!" E ficava por isso mesmo.

Até que, no dia seguinte, voltando do mercadinho, ela passou pelo calçadão da praia e viu, para seu espanto, o marido de dona Neide, o velho Olegário, de calção, aos amassos e lambendo os beiços com uma moça em biquíni. A vizinhança comentava: "Que velho mais safado. Todo dia é essa lambança. E na frente de todo mundo!"

No domingo, após a missa, dona Neide, como se esperava, aproximou-se de Laura com outras colegas de fuxicos e lançou: "Ô, Laurinha, me tire uma dúvida, criatura. Você e o seu Serafim são casados, tico-tico no fubá, ou o quê?" Ao que ela, segura e altiva, respondeu: "Nós somos felizes, dona Neide. Só isso: felizes!"

 

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