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Cebola Cortada
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Cebola Cortada


“Nossa, você é mesmo dura como pedra!” Casimiro achava incrível a enfática frieza da noiva. Desde que a conhecera, nunca de tê-la visto derramar uma única lágrima por nada nem por ninguém. Cria ele que, por ser mulher, deveria ela ser a porção sensível do casal. Mas não.

Ao contrário, seria ele, no dizer do povo, uma manteiga derretida, enquanto Petra, a noiva, era inabalável: “Se é assim, o que fazer? Adianta chorar, adianta?”


Aquela objetividade o molestava miseravelmente. Dissertava: “O pranto feminino tem um quê de beleza, suavidade, ternura, como se a pedir ninho, proteção, segurança.” Petra ria e fazia pouco: “Não é por ser mulher que tenho que ser assim...” E não precisava mesmo.

Contudo, até entre as amigas, era discriminada. Nunca de ser convidada como madrinha de casamento, nem de receber convite para leituras ou mesmo rodas de oração, simplesmente porque sabiam que Petra sequer expressaria qualquer emoção. Aliás, no próprio casamento, Petra não chorou. Todo mundo desmaiando, se descabelando, caindo em prantos mais sentidos e ela lá, devorando a mesa de doces às gargalhadas. O marido, sem graça, a censurava: “Meu bem, você não tem sentimentos, não?”


Alguns anos vieram, assim como os filhos, mas nenhuma lágrima se viu.

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Não percebia ela, mas Casimiro vivia um colapso moral. Sentia-se pequeno e frágil comparado à esposa casca grossa. Os diálogos rarearam e, só assim, Petra se alertou. Decidiu salvar a relação e quis aprender a cozinhar para ele. Sim, até então, tudo que era consumido em casa vinha em quentinhas.


Um dia, estava à cozinha praticando a sua culinária de internet, quando começou a cortar cebolas. Não demorou muito para que estranhasse: e não é que estava chorando? Não acreditou.

Enquanto esfregava o dorso da mão por sobre os olhos, ria-se de tanto chorar. Chorava pela primeira vez em sua vida e o fazia fartamente tal qual torneira arrebentada. “Que sensação maravilhosa!” Foi quando se deu conta do tempo que perdera. Daí, sem saber por que, lembrou-se do pai – morrera tão cedo... – a segurar a sua mãozinha de criança em um passeio na praça. Veio-lhe a saudade dos braços calorosos da mãe a lhe embalar o sono. A imagem do Eduardo, o vizinho que amara com todas as suas forças de adolescente, e que nunca lhe dera a menor bola. As amigas que lhe deram as costas. As discussões intermináveis com o marido. As primeiras doenças dos filhos... enfim, a sua vida inteira lhe era revelada naquelas cebolas.


Passou a se entregar a elas. Mal dormia pensando na hora de voltar à cozinha e iniciar o seu corte psicanalítico. Berrava e gemia revivendo as suas angústias e a desabafar pelos olhos. Aquilo, sentia, era libertador. E assim lhe foram todos os dias, até aquele em que, descuidosamente, ao remexer na roupa de lavanderia, encontrou um bilhete do dia anterior no bolso de Casimiro: “Meu amor, te espero. De hoje não passa! Beijos”. Logo a seguir, um endereço. Petra não acreditou: “Tanto esforço e o canalha se divertindo com outra? Que desaforado!” Indignada, trocou a roupa e se dirigiu ao covil daqueles amantes.


Não é preciso dizer como se deu estrondosa a sua entrada no apartamentinho. Casimiro e a amante, flagrados em lençóis, assistiam à mulher de olhos coléricos a esbravejar. Petra então sacou da bolsa uma faca. O pânico tomou conta: “Não, querida, não faça isso!” Em seguida, ela tirou da mesma bolsa uma enorme cebola e começou a cortá-la delirante frente ao casal estupefato, derramando por sobre eles as lágrimas de toda a sua vida.

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