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La Femme Bateau
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

La Femme Bateau

Para Sérvulo Esmeraldo
no Dia Internacional da Mulher


Vivia solitária em um barquinho rizado a se equilibrar por sobre longarinas a guerreira cariri. Por olhos castanhos amendoados, assistia todos os dias às crianças encimadas em ondas crespas a usar e abusar do seu eterno vaivém: “Quisera também eu ter essa liberdade”, pensava.

Ao longe, podíamos vê-la, quase triste, os compridos cabelos sempre a acompanhar a ciranda dos ventos e o passo do tempo, abstraída às manhãs num manto de luz e completamente enamorada pela linha do horizonte. Cansada da sua calculada ilusão, tinha por sonho, não sabíamos, bordejar, cruzar o desejado horizonte úmido e distante em abraços.

Um dia, o sol não amanheceu. Nuvens escuras tomaram os céus e o seu corpo em sombras, lançaram espadas de luz, rugiram e entornaram na terra outro mar cristalino.
As águas marinhas não aceitaram a invasão daquelas celestiais e as combateram com suas maiores e mais potentes vagas, numa revolta devastadora jamais vista.
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A guerreira de aço assistiu com assombro o violento embate das águas que ali se dava. Aos empurrões e tropeços, se jogavam contra as pedras da praia em forma de arrebentação, levando com elas o fundo do mar em areias e destroçando as vigas de madeira do velho píer. Era “o mar engolindo lindo e o
mal engolindo rindo.”

Foi quando, com astúcia e na certeza da efemeridade das coisas, o mar verde esmeraldo lançou-se sobre ela, como se a devorasse, e a arrancou de seu cativeiro.

Por um momento, saracoteando na crista da onda, ela acreditou ter alcançado o seu sonho: “Liberdade, finalmente?” Buscou seu amado e não o encontrou. Não havia mais nem céu nem mar, apenas um mundo gris. Todavia, desastrada e pesada, tombou na profunda escuridão do mar, no qual, antes de desmaiar, por um ângulo exato pôde ver os botos-cinzas cor de chuva, debochados como eram, a brincar de atrações nas ruínas do malfadado aquário natimorto.

Acordou dias depois, com parafusos a menos, assistida por homenzinhos com pés de pato. Ela, porém, para a surpresa deles, teimava em não segui-los. Não queria voltar.

Na superfície, cansada de lutar contra a sua captura, rodeada por uma turba de curiosos, ouviu, como em uma viniciana anunciação, quando lhe perguntaram: “De onde vens assim, tão
suja de terra?”

E ela respondeu, pois eu ouvi, na voz silente dos ventos: “A maior provação para o amor é deixar partir. Queria mesmo era ficar na lembrança, sentir a permanência única da saudade, colorir o imaginário do povo como aquela que se fez livre, escolheu seu caminho e se foi para todo sempre.”

 

Raymundo Netto

raymundo.netto@gmail.com 

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