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Escravidões hoje e ontem

2017-10-19 01:30:00

No Brasil Império, não era incomum escravos morarem longe de seus donos, trabalhando sem vigilância constante. Pedro Congo, no Rio de Janeiro sede da corte, foi um exemplo. Vivia com a mulher, Maria Roza, em casebre perto do centro. Havia ainda “escravos de ganho”, que podiam vender doce de tabuleiro, cuidar de estabelecimento comercial, transportar pessoas ou cargas. Não viviam encarcerados. Os escravos das casas grandes também viviam em situação peculiar. Desfrutavam de algum nível de intimidade da família e alguns tinham certo grau de autonomia. Caio Prado Jr., em Formação do Brasil Contemporâneo, aborda o caráter anômalo da escravidão urbana, sobretudo.


Não significa que eram formas brandas de escravidão, de maneira alguma. Pedro Congo, para ficar no exemplo, nasceu e morreu como cativo. Era uma vida de exploração permanente, objetificada e tratada como de segunda categoria. A maior tragédia humanitária da história brasileira, vergonha eterna do País perante o mundo.


O que quero apontar é que a privação de possibilidade de ir e vir não era condição para alguém ser considerado escravo no Brasil oitocentista. Porém, a portaria do Ministério do Trabalho desta segunda-feira pretende, em 2017, estabelecer essa condição para configurar trabalho escravo. Pelas novas regras, gente que era considerada escrava antes da Lei Áurea não teria essa condição reconhecida no Brasil do fim da segunda década do século XXI.


Apesar de não estarem sob privação de possibilidade de deslocamento, negros do Rio de Janeiro imperial e de vários outros centros urbanos do século XIX eram escravos, assim definidos em toda a legislação de então. Eram propriedades de seus donos. As formas de controle, dominação e vigilância iam além das correntes e chicotes dos feitores. Situações de escravidão de dois séculos atrás não seriam consideradas como tal em fiscalizações de hoje do Ministério do Trabalho.


Até então, configurava trabalho escravo ou condição análoga uma dessas condições: 1) trabalho forçado, 2) servidão por dívida, 3) condições degradantes (que atentam contra a dignidade humana e colocam em risco a vida ou a saúde do trabalhador) ou 4) jornada exaustiva (leva o trabalhador ao esgotamento e coloca em risco a saúde e mesmo a vida).


Para as autoridades e lobistas que pressionam pelas mudanças, tais condicionantes são são suficientemente graves. Não bastam como agressões aos mais elementares direitos humanos. Para eles, faltam grilhões. Faltam pelourinhos onde castigos sejam aplicados.


A pouco mais de seis meses para a abolição completar 130 anos e, nesse particular, retrocedemos.


CONSENTIMENTO E EXPLORAÇÃO

O cerceamento de liberdade como condição para caracterizar o trabalho escravo aparece porque o governo considera o não consentimento do trabalhador como essencial para essa condição. As Nações Unidas e organismos internacionais que promovem operações de resgate de pessoas consideram irrelevante o consentimento ou não. A pessoa pode até concordar em trabalhar por comida. Pode estar em desespero tal que aceite se submeter a condições degradantes e perigosas. Ainda assim, o empregador não tem direito de se aproveitar e explorar a situação. E cabe ao poder público impedir isso.

 

INJUNÇÕES POLÍTICAS

A nova regra para divulgação da lista de quem explora trabalho escravo estabelece necessidade de “determinação expressa do ministro”. Ou seja, submete à gestão política. Antes, a publicização das informações ficava à cargo da área técnica do ministério.

O ministro é o deputado federal Ronaldo Nogueira (PTB), pastor da Assembleia de Deus.


PARA SABER MAIS

Ynaê Lopes dos Santos é autora de dissertação de mestrado pela Universidade de São Paulo (USP) que aborda a relativa autonomia de que dispunham alguns escravos na época da corte. O trabalho é intitulado Além da senzala: arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro (1808-1850). Está disponível em http://bit.ly/alemdasenzala

FOME SEM ROSTO

A coluna de ontem comentou a ideia apresentada em São Paulo de usar ração feita de comida perto de apodrecer para alimentar os pobres. O leitor Mauro de Castro Andrade gentilmente escreveu a coluna e citou frase do papa Francisco que traduz a situação de forma melhor do que eu jamais seria capaz: “Quando a miséria deixa de ter um rosto, podemos cair na tentação de começar a falar e discutir sobre ‘a fome’, ‘a alimentação’, ‘a violência’, deixando de lado o sujeito concreto, real, que continua ainda hoje a bater às nossas portas. Quando faltam os rostos e as histórias, as vidas começam a transformar-se em números e assim, pouco a pouco, corremos o risco de burocratizar o sofrimento alheio”.

 

Érico Firmo

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