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Uma vitória para Temer

2017-09-05 01:30:00

As delações premiadas já são discutíveis pela própria natureza. Quem dedura comparsas contraria a “ética” existente mesmo entre criminosos. Sem falar que as informações partem da palavra de criminosos confessos. Não se sabe muita coisa sobre o que os delatores da JBS desastradamente entregaram à Procuradoria Geral da República. O procurador-geral Rodrigo Janot classificou o teor como “gravíssimo”. Há indícios de que o ex-braço direito de Janot, Marcelo Miller, teria atuado para favorecer os donos da JBS. Depois de exonerado, Miller foi trabalhar em escritório de advocacia contratado pelos irmãos Batista. A gravação mostraria ainda combinações relacionadas ao teor da delação premiada. Também haveria respingos no Supremo Tribunal Federal (STF).


Creio que ninguém nutria muitas ilusões sobre intenções e métodos de delatores. Era de se supor que os diretores da empresa combinaram o que iam dizer. Mas é diferente quando eles se gravam e expõem os próprios planos. Ainda mais quando envolve gente do STF e da própria PGR.


Por mais que Janot diga que as provas não são afetadas, a principal consequência do episódio é a fragilização política da anunciada nova denúncia contra o presidente Michel Temer (PMDB). A considerar que ela terá de passar pela Câmara dos Deputados, está praticamente inviabilizada. Um baque para o procurador-geral e vitória e tanto para o presidente da República.


TRÊS LIÇÕES DE DONA LUIZA

Luiza de Teodoro foi pioneira na introdução do método Paulo Freire no Ceará para alfabetização da população rural. Esteve na linha de frente do grupo que deu as diretrizes educacionais do primeiro governo Virgílio Távora. Eram pessoas de esquerda em um governo da UDN/Arena, que abria espaço para técnicos, para além de ideologia. Preparava marmitas para serem levadas aos presos políticos. Pensadora brilhante, contestadora como precisa ser o pensar. Concebia o aprendizado como processo libertador e criador. Algumas passagens que ilustram que ela era:

No governo Virgílio Távora, ela escreveu a Cartilha da Ana e do Zé, voltada às crianças do Interior. As publicações disponíveis na época vinham do sul. Traziam palavras e imagens que as crianças do sertão não entendiam. Viam um cacho de uvas e chamavam de pitomba. Luiza fez algo voltado à realidade local. E a cartilha era graficamente muito bonita, com belas fotos, ilustrações caprichadas. Era o começo da ditadura militar e ela foi chamada a Brasília para ser interrogada. Queriam saber por que não fez uma publicação mais simples, em papel de menor qualidade. Não seria tão bonita, mas teria melhor qualidade. Ela respondeu: “Pra uma criança que talvez só tenha esse livro na vida, ela tem que ter o melhor livro”.


O inquisidor era o lexicógrafo Antônio Houaiss. Ao final da explicação, ele disse: “Fui chamado aqui para questionar a professora e chego à conclusão de que eu ia dizer uma porção de bobagens. Assino embaixo o que ela está dizendo”. Ficaram amigos.


Também na ditadura, ela repreendeu seus alunos por escreverem a lápis. Eles explicaram que, ao final das aulas, vinham verificar o que havia nos cadernos. Então, eles escreviam a lápis e depois apagavam. “Foi uma das coisas mais lindas da minha vida de educadora. Eles aprenderam a usar táticas profundamente humanas para se defender e defender a mim também”, disse em entrevista ao O POVO, publicada em 9 de março de 1996.


Já nas aulas na universidade, havia olheiros, delatores. Documentos eram encaminhados da diretoria da Universidade Estadual do Ceará (Uece) para a 10ª Região Militar e, de lá, para o Serviço Nacional de Informação (SNI). Os papéis continham coisas assim: “A professora Luiza de Teodoro falou na aula que era a favor do divórcio”; “a professora disse na aula que, se Jesus Cristo tinha se encarnado, então ele tinha necessidades fisiológicas como qualquer ser humano”; “A professora declarou que a vida sexual deve ser prazerosa”. Na mesma entrevista publicada no O POVO, ela comentou: “Gastava-se papel, tempo e pessoas pra coisas assim. São exemplos do nível de ridículo a que as pessoas se expunham para serem agradáveis ao poder”.


Uma última passagem: em setembro de 1991, a Fundação Demócrito Rocha lançou o curso “Aids e cotidiano”, que visava combater o HIV por meio da informação. No lançamento do curso, foi exibido o vídeo Amor, vida, vida. O assunto era tabu e o vídeo causou certo escândalo entre alguns presentes pela forma clara e direta como tratava a prevenção. Na plateia, Luiza chegou a aplaudir sozinha alguns dos trechos. “Pela primeira vez eu vi tratar o problema da saúde com clareza, com sinceridade e sem hipocrisia. Ninguém vai deixar de tomar droga só porque tem medo da aids. Então, você tem que aprender pelo menos a se preservar da aids. E por que não ensinar a usar camisinha? Todo mundo transa e se não transasse a humanidade já tinha desaparecido. Então, que transe com segurança· Se o povo vê o governo mentindo, se vê crianças passando fome, por que não pode ver uma camisinha sendo colocada numa banana?”


A fala é de uma obviedade retumbante hoje. Há 26 anos, era escandalosa. Ainda bem que houve quem travasse esses embates.

 

Érico Firmo

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