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A mosca de Katherine
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

A mosca de Katherine

 

Já bem no final de sua vida, tive a oportunidade de conversar com o mestre Moreira Campos, levado pela saudosa filha Natércia (autora, dentre outros belos livros, do romance A Casa) à derradeira morada na rua Beni de Carvalho. Desses encontros ligeiros (nosso contista maior já sofria com um enfisema pulmonar que lhe tiraria a vida pouco tempo depois, então sua zelosa esposa Dona Zezé sugeria que dividíssemos a conversa em tempos menores, para que seu José Maria não se cansasse, daí ter voltado algumas vezes para "continuar" a conversa, que na verdade era quase um interrogatório meu sobre a nobre arte do conto, pois eu me iniciava nessa árida tarefa e nada mais "justo" que quisesse aprender lições "grátis" do simpático escritor, que dava aulas no curso de Letras da UFC e participava de várias antologias nacionais).

 

Dos autores brasileiros ele se referia com frequência a Machado de Assis e a Dalton Trevisan, mas qualquer palestra sua terminava sempre com alguma frase oportuna do russo Tchecov, umas já bem conhecidas de seus alunos e admiradores: "Se a espingarda não vai disparar, retire-a da sala"... "Se um personagem tosse no início do conto, com certeza morrerá de tuberculose", citação que tive oportunidade de ouvir de sua boca em pelo menos três ocasiões, sendo que nesta última visita ele deu uma parada pensativo entre uma tosse e outra, retomou o fôlego difícil e, como se tivesse afastando algum pensamento indesejado, completou o raciocínio: "Como Katherine Mansfield, que morreu tão jovem mas que sabia de tudo...", e como eu não sabia de quem se tratava e minha vergonha não permitia um pedido de esclarecimento, apenas assenti com a cabeça, quando ele continuou a falar maravilhas da escritora, depois fui saber e procurar ler tudo, como aquele aluno aplicado que anota até arroto do professor para depois estudar sozinho em casa.

 

Foi a única vez que ele citou a autora em conversas e conferências a que assisti (e senti enorme pena de ainda não conhecer a formidável neozelandesa, para poder ter tido com ele um aprendizado mais proveitoso, e quem sabe até fazer algumas ponderações sobre possíveis diálogos de contos dele com os dela), porém o fez com tamanho empolgação e meticulosidade que desconfio que ela habitava em seu coração o mesmo espaço do autor de A dama do cachorrinho; e dos elogios gerais sobre a autora de Festa ao ar livre passou a falar de um conto especial que se chamava A mosca, nele um velho aposentado e doente era trancado em casa pelas esposa e filhas, mas liberado às terças-feiras para voltear pela cidade e reencontrar os antigos conhecidos; e, numa dessas visitas a um velho companheiro de trabalho, ele, depois de elogiar a sala novinha e arrumada, deixa escapulir "inocentemente" que suas filhas visitaram o túmulo do filho de seu interlocutor, causando neste uma tristeza irremediável, que acaba com seu dia e que o leva a um mal estar apenas superado (ou esquecido?) pelo insignificante (para não dizer o contrário) incidente de uma reles mosca que caiu em seu tinteiro e acaba "salva" várias por ele em cima de um mata-borrão.

 

Mas não vou contar o restinho da história, para não lhes frustrar o prazer e compreensão da essência daquele diálogo que tive com o velho mestre naquela tarde mágica perdida no tempo, em que ele passava por um drama terrível, tal qual ao da autora do conto e, também, do personagem de A Mosca; triste sintonia que só fui descobrir, numa tradução portuguesa, quase duas décadas depois.

 

Foto do Pedro Salgueiro

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