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Relógio de copas
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Relógio de copas


Nunca possuí um relógio: a passagem do tempo contada assim em tique-taques assusta. O contínuo matraquear da ampulheta de metal segreda: “mais um, menos um”. Racionalmente tento minimizar esse sofrimento – entender que o tempo é apenas uma convenção entre tantas que o homem foi inventando para ordenar seu viver.


Podemos medir nossa existência no tempo através de eventos regulares, como a Copa do Mundo de Futebol, por exemplo. Frequentemente escuto algum desportista dizer, não sem uma pontinha de orgulho, que já “cobriu” tantos mundiais de futebol: a maioria dos participantes da conversa sequer era nascida.


Eu tinha 6 anos incompletos na Copa de 70. Recordo-me de pouquíssimas passagens do evento: uma paródia musical que dizia “se eu fosse o Tostão, tirava o calção; se eu fosse o Pelé, tomava café”, porém o que me marcou nesse campeonato vitorioso foram as figurinhas de chicletes com fotos de jogadores – com elas brincávamos do “bate” (versão interiorana do “bafo”), onde, numa roda de amiguinhos, tentávamos virar as figurinhas usando as habilidades e os truques mais inusitados; e, entre correntes de vento cuidadosamente estudadas, sopros de canto de boca, melecas e cuspes na palma da mão, me restou uma saudade que ainda hoje me mareja os olhos: o cheiro delicioso do chiclete depois de muito mastigado.

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Da de 74 me recordo vagamente (eu já sonhava em ser jogador) da decepção do jogo contra a Holanda, da grande correria da “laranja mecânica”, que atropelou impiedosamente Leão, Luiz Pereira, Rivelino, Jairzinho e seus companheiros; pouca coisa mais: o chão frio da casa do tabelião Fernando Farias (onde assistimos aos jogos), um “foguete” de Rivelino derrubando um atleta da barreira do Zaire. Em 78 eu tinha quase certeza de que na próxima copa estaria entre os convocados: meu pai sapateiro me fizera um par de chuteiras com “biscoitos” de sola e pregos que confirmava essa hipótese.


Da Copa de 82, já em Fortaleza estudando para o vestibular, guardo as lágrimas, a perda da inocência e uma profunda revolta contra os “deuses do futebol”: nunca mais vi o esporte com olhos românticos e até hoje não consigo ver nenhum lance daquela fatídica peleja; se a TV reprisa qualquer jogada eu viro o rosto, um travo na garganta só comparável com o do término do primeiro namoro. Para “coroar” o ano terrível, logo depois morre meu querido pai.


Em 86 e 90, eu, já universitário, havia perdido todo o sonho de ser atleta: um intelectual não deveria ser um “alienado”, rezava a cartilha marxista-leninista que me regia; no fundo sofria com cada derrota. Mas nem as vitórias de 94 e 2002 ou as derrotas de 98, 2006 e 2010 “mexeram” mais com meus sentimentos, apenas surfei na onda do “divertimento geral da nação”; em 2014 revivi a decepção de 82, pasmas lágrimas tardias.


Somente dia desses fiz essa associação de cada Campeonato Mundial de Futebol com determinado período de minha vida: desde a inocência de 70 até o susto de 2014, passando pela monumental tragédia de 82. Cada uma com seu contexto, seus problemas, suas (des)ilusões... Mas espero sobreviver (com saúde) umas três Copas do Mundo.

Foto do Pedro Salgueiro

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