Logo O POVO+
Atrás da porta
Foto de Pedro Salgueiro
clique para exibir bio do colunista

Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Atrás da porta


Sempre tentei seguir ao pé da letra o conselho do curitibano Dalton Trevisan, que – por não conceder entrevistas nem falar abertamente sobre literatura – disfarça nas entrelinhas de seus contos, “orelhas” de seus livros e até em cartas de justificativa pelas muitas ausências em solenidades de entrega de prêmios, pequenas sugestões estéticas, como a que diz: “O que não me contam, escuto atrás da porta”.


Diversas histórias ouvi em viagens de ônibus, salas de espera, filas de banco, muitas delas vieram aos meus ouvidos saborosamente em pedaços, incompletos e salteados, como se me convidassem a imaginar-lhes um ou mais desfechos plausíveis. Certa vez desci duas paradas depois da minha para tentar escutar um final de fofoca, espera frustrada pela repentina mudança de assunto dos conversadores: desci irritado, mas aproveitei a volta de muitos quarteirões para imaginar a sequência do relato.

[QUOTE1]

Porém algumas narrativas surrupiei de amigos, colegas de repartição ou companheiros em mesas de boteco; essas vieram mais completas, com oportunidades de reprises e esclarecimentos de dúvidas – o que não significa que foram as mais fáceis de serem depois recontadas no papel. Como a que escutei de uma namorada que trabalhava num escritório de advocacia sobre uma simples divisão de bens que já fora feita pela falecida de maneira informal a cada uma das filhas um pouco antes de morrer:


PARTILHA

A velha tinha deixado a casa, depois vendida, e repartido o dinheiro — as joias, seria bem mais difícil um acordo. Valor sentimental: repetia a primogênita, justo uma das que haviam ficado de fora na divisão verbal feita pela mãe dias antes de ir. Valor sentimental tem as palavras dela — retrucou uma das quatro felizardas, desdenhosa. Dois já em vias de fato — nem se olhar podiam. E um único jeito: no escritório de um advogado, no décimo andar do prédio no Centro. Ausente os dois inconciliáveis. Ansiosas as duas irmãs, caladas — esperando desta vez pela sorte. A leitura das regras, a concordância tácita: e o doutor chama a datilógrafa para fazer o sorteio — a ordem de idade: em cada papel o nome da joia. Um minuto valendo anos — nenhuma surpresa: a secretária vendada, leitura feita pela própria sorteada — exatamente como tinha deixado a mãe. As reincidentes da sorte com seus olhares distantes, um ligeiro sorriso no canto dos lábios — As novamente excluídas, lágrimas. Um longo abraço na secretária.

— Senti que mamãe estava entre nós.”

Foto do Pedro Salgueiro

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?