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Uma cena (quase) banal
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Uma cena (quase) banal


Começo de mês, as mariposas todas na rua, apesar do sol alto. O magricela puxou o camisão sujo até o nariz. Com o pulmão em brasa cheirou toda a coragem do mundo numa garrafa de plástico, o olho duríssimo mirando a velhinha do outro lado da rua. As duas adolescentes distraíram a vítima fingindo uma briga. Por trás o ataque, o erro, o vacilo da mão trêmula. Segunda tentativa e o bote quase perfeito, não fosse o rasgo da unha no pescoço engelhado da senhorinha.


No descer da calçada alguém grita:


- Peeeega!...


O táxi barra a carreira, o motoqueiro tenta o atropelo, e as pernas do magrinho bambas demais para a fuga.


- Agarra as duas que ele jogou o cordão pra elas, peeega!


As primeiras tapas, a mãozona do senhor de gravata não dá trégua. O da moto tira o capacete pra acertar o coco do franzino, resvala mais do que tenta; parece cansar, de vez em quando desfere um chute certeiro no infeliz.


- Pegaram as meninas, lá vem...


O comerciante da esquina traz a maior pelos cabelos, de quando em vez sacode com um safanão a pequena, que, aturdida, não sabe se foge ou se ajuda a amiga. A cada pergunta de “onde jogou o cordão”, o magricelo responde com um gemido: novos tapas e chutes. As meninas são levadas para um canto, e alguém, obedecendo as ordens do comerciante, baixa as roupas das meninas. Nada. Quando alguém, mais esperto, sugere:


— Ela botou na boca! Abre...


Um ambulante, que até então apenas ria, passou as bugigangas para uma só mão e com a outra tentou abrir a boca da maior, não conseguiu. Jogou os apetrechos no chão. Uma tapa e um aperto nos maxilares facilitaram: enfiou os dois dedos e saiu de lá com o cordão, que havia sido parcialmente engolido. Deixou a baba e um filete de sangue na camisa, antes de entregá-lo limpinho ao gordão do comércio.


Mais alguns tapas nas meninotas, mais alguns chutes no magrinho e parecem ter cansado de vez. Alguém sugere a polícia; o da moto desdenha que é tempo perdido. Divertem-se mais um pouco; a metade da bundinha seca da menor permanece fora da calçola. A maior se resigna a chorar. O magro jaz sentado no beiço da calçada, cabeça entre os joelhos.


Uma senhora arrumada se compadece da situação e ameaça denunciar aos “direitos humanos”, mas logo percebe que não conseguiu o apoio de quase ninguém e se afasta falando ao celular. Nem escuta o que o da moto lhe diz:


- Vai-te embora, jabiraca!... É porque não foi contigo...


Pelo sim, pelo não, arremessam mais uns safanões nas garotas, um empurrão no magrinho, que saem correndo de pernas bambas, ente a saraivada de gritos:


— Peeega! Peeega ladrão!...


No dia seguinte, no mesmo local, lá vem o mesmíssimo magrelo, o joelho descascado, a camisa ainda rasgada, e o olho direito, um pouco menos inchado, à procura do vacilo da senhora de verde, na outra calçada.


Acena para as meninas, dando o sinal; atravessa calmamente a rua por entre os carros.

Foto do Pedro Salgueiro

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